Igor Domingues*

Eis veio a nós em barca se acercando

De cãs coberto um velho – “Ó condenados,

Ai de vós!” – alta grita levantando.

“O Céu nunca vereis, desesperados:

Por mim à treva eterna, na outra riva,

Sereis ao fogo, ao gelo transportados. [1]

Chegamos à metade do ano de 2020. Há poucos dias, em 25 de junho, o primeiro caso de Covid-19 completou 4 meses de sua detecção em São Paulo. Muitas confirmações de casos depois podemos afirmar que o medo socialmente disseminado pelo escalonamento da pandemia no país encontrou o irracionalismo da flexibilização adotada diante das medidas sanitárias de segurança, levando, gradualmente, a uma dessensibilização à realidade imposta aos trabalhadores, mas não somente.

Ocorre que, mesmo nessa particular conjuntura, o aparato estatal, expresso em suas forças de repressão (as polícias), age em seu modus operandi historicamente atestado em nosso país: o massacre à população periférica, majoritariamente negra. Casos emblemáticos cabem mais uma vez serem ressaltados. No estado do Rio de Janeiro, temos o assassinato de João Pedro (que completaria 15 anos neste 24 de junho), dentro de sua casa no Salgueiro em 18 de maio, e o de João Vitor, assassinado durante entrega de cesta básicas na Cidade de Deus em 20 de maio. Em São Paulo, temos o sequestro e assassinato de Guilherme, em 14 de junho na rua de sua casa na Zona sul da capital paulista.

Tomando por base os dados do ministério da saúde em 6 de julho, a região Sudeste lidera em números absolutos a pandemia, atingindo a marca de 559.122 casos e 29.900 mortes, o que corresponde, de forma aproximada, a 34% e 44,6%, respectivamente [2]. Aparentemente, o estado de Minas Gerais demonstra dados pouco alarmantes, tendo em vista possuir o menor número de casos e óbitos acumulados na região, no entanto, a maré mansa esconde a força das correntes que se arrastam nas profundezas. 

Em 28 de abril, o governo Zema lançou o programa “Onda Consciente” de reabertura do comércio [3]. Porém, o crescente de casos decorrente da adoção das medidas de flexibilização no estado nos demonstra um cenário amedrontador. Se no início do mês de junho o estado de Minas Gerais se encontrava entre os que menos realizavam testes, utilizando-se apenas de 6% da capacidade de testagem [4], ao fim do mesmo mês já se encontrava liderando o macabro ranking, utilizando-se entre 2% e 4% da capacidade de testagem no estado, realizando 155 testes/dia [5]. Em pronunciamento no dia 24 de junho Zema, na contramão da racionalidade, afirma a improbabilidade de decretar lockdown, relegando às prefeituras o poder de decisão [6], como se afirmasse:

“Deixai, o vós, que entrais toda a esperança!” [7]

Apesar de não exercer controle direto sobre os grandes meios de comunicação, como a família Neves [8], Zema tem o apoio dos mesmos por meio da parcela empresarial da burguesia, que abafa a disseminação das medidas impopulares do governo estadual. Cria-se assim uma cortina de fumaça onde antes se encontrava uma nuvem de pó, nesse truque, porém não é o mágico que desaparece, mas os direitos duramente conquistados.

Se Zema foi eleito sob a legenda Novo, não poderia ser mais velha a farsa democrática/republicana presente na tradição política mineira. O coronelismo marcante da Republica Velha, cunhado na política do “café com leite” é argamassa com que se erguem as estruturas políticas mineiras, não tendo sido superado, mas mascarado com as brumas do tempo, até o tempo presente. Minas Gerais, estado com o maior número de municípios (832 ao todo), tem por tendência concentrar o poder político nos membros das grandes famílias das pequenas cidades. Os modernos coronéis podem ser até mais carismáticos que aqueles da Primeira República, mas fato é que detém as rédeas para fazer dos seus interesses a política estadual, sejam fazendeiros, industriais ou atacadistas, como Vossa Excelência.

Se por um lado a caquética tradição política persevera, o faz qual cobra em tentação pelo fruto proibido. Zema se aquieta, furtando-se das polêmicas com o governo federal, como fizeram João Dória e Ronaldo Caiado, compreendendo que nesse momento, mais que ganhar a antipatia da base bolsonarista caso o faça, pode novamente aparecer como um suposto moderado nas próximas eleições estaduais. O cretinismo parlamentar enquanto traço tipicamente republicano, se demonstra não apenas pelos personagens protagonizando a cena, mas também, e, em certa medida, essencialmente, pelos supostos coadjuvantes, cuja figura lentamente se constrói na sombra das coxias.

Devemos recordar que ao Bonaparte brasileiro também se faz necessária sua Sociedade 10 de Dezembro. O golpe dentro do golpe cuja efetivação deu-se debaixo de nossos narizes foi arquitetado, consentido e executado pelos governos dos estados, antes que pudesse sê-lo a nível nacional. 

Bolsonaro teve, no segundo turno do pleito, o apoio de 15 dos 27 governadores eleitos em 2018 – nos estados de Espírito Santo, Tocantins e Pará, os candidatos eleitos se abstiveram de posicionamento e nos 9 estados da região Nordeste, apoiaram Haddad [9] – demonstrando o compromisso político assinado a letra miúda enquanto se transmitia pelas redes sociais o tosco, porém grandiloquente, projeto para a nação brasileira: então já se declarava estarmos de frente para um abismo, pressionados pela atual crise econômica e pela crise política brasileira, portanto, a composição do governo seria dos setores mais avançados da burguesia, subordinada ao imperialismo estadunidense, e seus mais entusiastas lacaios, sediados em suas frações estaduais, permitindo assim que déssemos um passo em diante.

Devemos ressaltar que não é pura e simplesmente sua eleição que nos colocou em queda livre, como querem fazer crer os amplos setores da “esquerda” parlamentar e liberal (socialdemocrata, por excelência), que objetivam a restauração de uma ordem antes vigente pautada por uma agenda menos agressiva de ataques do capital, ainda que não deixe de sê-la, vestindo a fantasia republicana da representação da classe nas instancias eternas e divinas da República Federativa do Brasil. É no esforço por se fazer cumprir nos estados a aprovação das reformas sinistras que a se autentica o contrato em duas vias. Bolsonaro e seus dezembristas saem por baixo neste negócio, garantindo suas rendas, lucro médio e peças para o jogo político. Avançam em ganhos os setores mais avançados da burguesia, com a massa dos lucros ascendente e a possibilidade de reverter a queda da taxa de lucro por sobre a dependência brasileira, a chacina e negligência da parcela mais proletarizada da população e a exploração do trabalho a custos cada vez menores. 

Nesse tresladado infortúnio, ficamos nós, trabalhadores, “agora e na hora de nossa morte”, entre a aparência da salvação e o escárnio da verdade. O desemprego cresce – atingindo nacionalmente a taxa de 11,4% em fins de maio [10] e as menores taxas de ocupação da População Economicamente Ativa (PEA) desde 2012 (49,5%) [11] – e se comprova na colocação do estado entre os que possuem mais pedidos de seguro-desemprego, 22.435 apenas na primeira quinzena de abril [12]. Faltam dados, faltam leitos, faltam programas para assegurar não mais a dignidade humana, mas a reprodução simples da vida. Talhada em ouro no Palácio das Mangabeiras a palavra “empreendedorismo”, lemos “subemprego” em crescimento histórico da curva de infecção, que, assim como o COVID-19, parece estar longe de seu ápice. 

“Que dor tão viva deles se apodera,

Que aos carpidos motivo dá tão forte? –

Serei breve em dizer-to – Me assevera. –

Não lhes é dado nunca esperar morte;

É tão vil seu viver nessa desgraça,

Que invejam de outros toda e qualquer sorte.

No mundo o nome seu não deixou traça;

A Clemência, a Justiça os desdenharam

Mais deles não falemos: olha e passa.” [13]

Ao menos em algo Zema expressou uma verdade ao declarar a improbabilidade do lockdown. Enquanto perdurar o modo de produção capitalista, que potencializa a disseminação da atual pandemia ao forçar que a maioria da população, que produz toda a riqueza, se exponha diariamente a graves riscos à sua vida para que uns poucos se deleitem com os lucros a partir das mais cômodas moradias, as probabilidades de que o direito à vida seja universal são baixas. 

Como afirma a premissa lukacsiana “o pior socialismo é preferível ao melhor capitalismo”, não nos encontramos, porém, nem geograficamente, nem mesmo historicamente no melhor capitalismo; cabe, dessa maneira, a mobilização dos aparelhos de organização da classe contra os retrocessos, mas não somente, a organização popular deve mirar suas armas aos seus generais, amotinar-se contra os exploradores, antes que perceba, no balançar da barca do Caronte, adentrar definitivamente nas muralhas da cidade infernal pelo pecado da traição de seu dever histórico.

*Historiador e militante do PCB e da União da Juventude Comunista.

[1] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1ed. São Paulo: Martin Claret, 2008. P. 38, 28ª-29ª estrofe.

[2] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus Brasil, 2020. Painel Geral. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/

[3] LIMA, Deborah. ‘Minas Consciente’: entenda como funciona o programa para reabrir o comércio. Estado de Minas, 28 abr. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/04/28/interna_gerais,1142710/minas-consciente-entenda-como-funciona-o-programa-reabrir-comercio.shtml 

GOVERNO DE MINAS GERAIS. Estado de Minas Gerais. Minas Consciente: entenda o plano. Disponível em: https://www.mg.gov.br/minasconsciente/entenda-o-programa

[4] PIMENTA, Guilherme. Governo de Minas Gerais analisa, em média, 239 exames de Covid-19 por dia, apenas 6% da capacidade. G1 Minas, Belo Horizonte, 09 jun. 2020. Disponível em: https://www.mg.gov.br/minasconsciente/entenda-o-programa

[5] FIÚZA, Patrícia. Mesmo com ocupação recorde de leitos, Minas Gerais é o pior estado em testagem para Covid-19. G1 Minas, Belo Horizonte, 23 jun. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/06/23/mesmo-com-ocupacao-recorde-de-leitos-minas-gerais-e-o-pior-estado-em-testagem-para-covid-19.ghtml 

[6] MORAES, Gabriel. Zema diz que não deve decretar lockdown em Minas, pois decisão é dos prefeitos. O Tempo, Belo Horizonte, 24 jun. 2020. Disponível em: https://www.otempo.com.br/cidades/zema-diz-que-nao-deve-decretar-lockdown-em-minas-pois-decisao-e-dos-prefeitos-1.2352965 

[7] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1ed. São Paulo: Martin Claret, 2008. P. 36, 3ª estrofe.

[8] Repórteres Sem Fronteiras destaca Aécio como “coronel” da mídia. Carta Capital, 27 jul. 2016. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/reporteres-sem-fronteiras-destaca-aecio-como-coronel-da-midia/

PASSOS, Najja. Como opera a máquina de censura de Aécio em MG. Carta Maior, 23 out. 2014. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Como-opera-a-maquina-de-censura-de-Aecio-em-MG/4/32076

FERRAZ, Lucas. Depois de muita lorota, o jornalismo venceu. A Pública, 25 mai. 2017. Disponível em: https://apublica.org/2017/05/depois-de-muita-lorota-o-jornalismo-venceu/ 

[9] VILELA, Pedro Rafael. Bolsonaro recebeu apoio de 15 dos 27 governadores eleitos. Agência Brasil, Brasília, 28 out. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/bolsonaro-recebeu-apoio-de-15-dos-27-governadores-eleitos 

[10] BÔAS, Bruno Villas. Desemprego cresceu 10,8% entre a primeira e a última semana de maio. Valor Econômico, Rio de Janeiro, 16 jun. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/06/16/desemprego-cresceu-108percent-entre-a-primeira-e-a-ultima-semana-de-maio.ghtml 

[11] BEZERRA, Paula. Pela primeira vez, mais da metade dos brasileiros não têm trabalho, diz IBGE. CNN Brasil, São Paulo, 30 jun. 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/06/30/pela-primeira-vez-mais-da-metade-dos-brasileiros-nao-tem-trabalho-diz-ibge 

[12] Minas é o segundo estado com mais pedidos de seguro-desemprego. Estado de Minas, 28 abr. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/04/28/internas_economia,1142595/minas-e-o-segundo-estado-com-mais-pedidos-de-seguro-desemprego.shtml 

[13] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008. P. 37, 15ª-17ª estrofes.