Ninguém em sã consciência discorda que essa massa continental a sudoeste do Oceano Atlântico vive há cinco séculos sob o jugo colonial. Mesmo após a declaração da independência da dominação formal portuguesa, o Brasil seguiu servindo aos interesses de outras potências estrangeiras – primeiro a Inglaterra, e hoje os EUA. Desde a conquista portuguesa, o nosso país nunca teve autonomia ou projeto genuinamente próprio, sendo em grande parte uma vendinha barata onde os poderosos do mundo buscam seus alimentos e matérias-primas. O Brasil exibe as várias das características que marcam os demais países da periferia do capitalismo mundial, sendo uma das mais pronunciadas o conluio entre a burguesia local e os interesses imperialistas estrangeiros – apesar de nos últimos anos alguns capitalistas brasileiros terem se catapultado para o panteão financeiro de primeiro nível.

Um projeto de soberania nacional, anti-imperialista e que nos garanta autonomia produtiva é fundamental para que o povo brasileiro saia de vez da miséria em que volta a se afundar. E esse projeto precisa romper com a própria forma capitalista de produção que nos prende ao subdesenvolvimento, que deve ser substituída por uma economia pública e popular, que não funcione visando o lucro privado, isto é, precisamos de uma economia socialista. Quem não entende isso está fadado a correr atrás do próprio rabo indefinidamente.

Alternando momentos de objetividade programática ingênua e delírios ufanistas dignos de Policarpo Quaresma, Ciro Ferreira Gomes mistifica aspectos fundamentais do capitalismo periférico e dependente no qual nosso país se insere, fugindo de questões centrais da soberania nacional enquanto dá soluções detalhadíssimas para aspectos secundários. Pretensamente um manifesto anti-neoliberalismo, “O Dever da Esperança” desfila por suas quase trezentas páginas um projeto datado, recheado de erros já cometidos no passado. Enquanto dá ao leitor uma série de soluções inexequíveis mas muito bem-apresentadas, o pedetista fica a um passo de aplaudir o governo ditatorial de Castello Branco e apresenta fracassos anunciados, como o Plano Real, como traições e desvios das ideias originais.

Uma das acusações que o autor sofre em relação à sua vida política é sobre sua conturbada trajetória partidária. Ciro se defende dizendo que mudou de partido para não mudar de ideais, apontando que foram as organizações que mudaram, e não ele. O pedetista se vê e tenta se mostrar como um sujeito coerente consigo mesmo, quando a realidade apresenta uma pessoa teimosa, que insiste numa ideia que não tem espaço no capitalismo periférico. Em vez de assumir que sua visão de mundo é profundamente equivocada, Ciro Gomes acusa seus colegas de se desviarem do caminho ideal que ele apresenta e defende. Isso é patente no seu balanço do Plano Real. Na época do seu lançamento, amplos setores da esquerda, do PCB ao PT, denunciaram que o plano estava fadado ao fracasso e se opuseram corretamente a ele. Todas as críticas feitas naquele momento se concretizaram com o passar do tempo. Ciro Gomes não aceita que estava errado e atribui o aprofundamento do rentismo proporcionado pelo Real a uma deturpação das ideias que tinham sido originalmente propostas, o que supostamente o levou a sair do PSDB.

Ao mesmo tempo que faz uma exposição acertada sobre as motivações golpistas que tiraram do poder Getúlio Vargas, João Goulart e Dilma Rousseff, não há sinal algum de um plano para combater a raiz do problema. O cerne do seu programa é fazer com que seja mais lucrativo para o burguês brasileiro investir em produção do que em bancos, tornando o rentismo obsoleto. Ciro aposta na formação de uma “nova burguesia”, quase como se seu mandato fosse uma grande incubadora de empresas júniores, sem dizer o que fará com a velha burguesia que seria obrigada a sair de cena se não quiser se adaptar ao seu projeto. Após denunciar, corretamente, que a burguesia brasileira é uma classe acomodada por juros altos de uma especulação que remunera mais do que a atividade industrial, o que garante que os empresários aceitarão pacificamente a mudança que ele propõe? 

O autor também erra grosseiramente ao tratar das FFAA. Na seção dedicada ao seu projeto de reforma da previdência, Ciro dá a entender que a manutenção da desproporção previdenciária militar foi algo surgido do nada, e não resultado de uma pressão organizada dos coturnos. A conivência dos militares com a agenda entreguista parece não existir no mundo encantado de Ciro Gomes, o alinhamento subserviente da Escola Superior de Guerra aos EUA não é sequer mencionado. Os oficiais não tinham e até hoje tem problema nenhum em abrir as fronteiras para o SOUTHCOM enquanto isso encher seus bolsos. Nossos militares são antipatriotas comprometidos apenas com suas polpudas pensões e aposentadorias, e não será um civil bravateiro que os fará mudar de postura. Qualquer projeto anti-imperialista precisa ter como um de seus pontos centrais um expurgo massivo na caserna – é aqui que a acusação de “bolivarianismo” virá, não na promoção de plebiscitos.

A mesma ingenuidade aparece quando fala da mídia. Quase repetindo Dilma, que dizia que o único controle que ela precisava era o controle remoto, Ciro aposta em uma regulação de mercado através expansão da oferta de meios de comunicação. Em mais uma de suas contradições, o pedetista demonstra acertadamente o papel da mídia nos golpes perpetrados contra quem ousou levantar um dedo sequer contra a farra bancária enquanto parece acreditar que com ele será diferente sem dizer com clareza o porquê. É como se Ciro Gomes insinuasse que a mesma Globo que declarou guerra a Leonel Brizola, derrubou João Goulart e Dilma Rousseff, rasgou as carteiras de trabalho e proibiu o proletariado brasileiro de se aposentar, aceitaria colaborar pacífica e alegremente com quem diz querer ferir de morte o centro do seu modelo de negócios.

Num malabarismo absurdo, porém necessário para a sua agitação ufanista caricatural, Ciro atribui ao varguismo o que ele chama de maior sucesso industrial do mundo, onde num intervalo de quarenta anos o Brasil teria tido a industrialização mais rápida do mundo, com um ponto final em 1974. Jogando no mesmo saco alguns períodos radicalmente diferentes da política brasileira, o ingênuo democrata praticamente reabilita os anos ditatoriais de Castello Branco a Médici, sob cujo governo o Brasil vivenciou uma onda de desnacionalização intensa. Em meio aos seus estudos de manuais de liberalismo em Harvard, talvez tenha faltado a Ciro Gomes ler um pouco do falecido marxista Moniz Bandeira.

Ainda que essa industrialização realmente tivesse ocorrido como Ciro apresenta, não seria nem de longe o maior caso de sucesso da história: a economia planificada da União Soviética, sob a liderança de Josef Stalin, demorou pouco mais de uma década para ir do arado de boi à ponta da tecnologia, chegando às vésperas da Segunda Guerra como a terceira maior potência industrial do mundo após um processo de industrialização iniciado em 1928. Apagar o sucesso soviético é imprescindível para a doutrina trabalhista, que desde sua fundação se portou como o braço esquerdo do anticomunismo.

Esconder não apenas a façanha socialista da década de 1930 mas todos os outros processos de industrialização bem-sucedidos na história é parte integral da exposição de Ciro Gomes. É fundamental para seus objetivos políticos esconder as dificuldades práticas da mudança acelerada da organização produtiva de um país. Ciro mistifica até mesmo o Estado Novo varguista que ele próprio reivindica, que foi caracterizado por uma escalada autocrática, tortura a opositores e repressão generalizada. Todos esses meandros práticos da empunhadura do poder são postos de lado ao apresentar suas ideias ao público, induzindo o leitor a pensar que o fim da república banqueira se dará como num estalar de dedos – ou numa fala enérgica diante dos microfones.

Não apenas fingindo que os planos quinquenais liderados por Stalin não foram um absoluto sucesso econômico, o balanço apresentado por Ciro sobre o fim do socialismo no Leste Europeu também é cínico e cuidadosamente montado para que ele próprio não discuta pontos fundamentais em seu projeto. O leitor despreparado terminará o livro com a impressão que a União Soviética e os países do Pacto de Varsóvia caíram de podres, por estarem fadados ao fracasso, ou algo assim. Para as aspirações eleitorais de Ciro Gomes é proibitivo falar abertamente sobre a defesa contra insurgências reacionárias, contrarrevoluções, golpismo e sabotagens de qualquer tipo. Até sua apresentação do que ele entende por “guerra híbrida” é equivocada, abstrata e inútil. Talvez seja por isso também que Ciro dedique tão pouco espaço a falar do também trabalhista João Goulart, cujo mandato foi interrompido com participação direta dos EUA após regulamentar a lei de remessas de lucros. Em vez de enfrentar o golpe, Jango fugiu para o estrangeiro.

Ciro Gomes apresenta ao leitor uma transição suave, republicana e democrática da oligarquia bancária para um paradigma industrial anti-imperialista – uma ingenuidade, que para alguém que faz questão de lembrar a cada dez páginas que tem quarenta anos de vida pública, parece muito estranha. Estaria o trabalhista redondamente enganado? Ou talvez prepara um estelionato eleitoral como o que ele, corretamente, acusa a ex-presidenta Dilma de cometer? Sua crença na colaboração de boa-fé das classes reinantes no país torna seu projeto um Aquiles com um alvo gigantesco pintado abaixo da panturrilha. Ele parece reduzir tudo a uma questão de um grande acordo nacional, com a burguesia, com tudo. Caso ele não esteja mentindo para o leitor e para o eleitor, a “esperança” à qual ele se refere é que magicamente as forças que têm muito a perder com suas propostas passem a colaborar com ele. Mas “esperança” não é uma estratégia.