Nas últimas semanas evidenciamos manifestações populares e massivas ao redor do mundo e no Brasil, iniciadas nos Estados Unidos, a partir do assassinato de George Floyd, um homem negro estadunidense, que foi estrangulado em publico por um policial, na cidade de Minneapolis.

No Brasil, frente à politica de assassinato enfrentada pela população negra nas periferias brasileiras pelas mãos de agentes do estado, conjuntamente com a conjuntura pandêmica que enfrentamos sob o governo de Bolsonaro, as mobilizações tomaram um caráter e uma identidade visual antifascista e com isso uma polêmica tem tomado protagonismo em discussões nas redes sociais: A luta antifascista apaga ou relega a luta antirracista a um segundo plano?

Esse questionamento que tem acalorado os debates durante as últimas semanas, tem que ser levado muito a sério, tanto para compreendermos o que aflige, dignamente, vários de nossos companheiros do Movimento Negro. Quanto para resgatarmos historicamente o que foi a Ação Antifascista, o que é o fascismo e sua forma brasileira.

Comecemos buscando a origem do Movimento Antifascista: Fundado pelo KPD (Partido Comunista Alemão) juntamente com agrupamentos Anarquistas, em meados de 1932, a Antifaschistische Aktion (Ação Antifascista), foi uma frente de combate ao crescente numero de agrupamentos paramilitares fascistas que a durante a República de Weimar a Alemanha se deparava. Essa frente, portanto, além de combater tais grupos tinha um forte caráter Anticapitalista e revolucionário. 

Como já foi discutido e esmiuçado por diversos autores como Franz Fanon, Angela Davies, Florestan Fernandes entre muitos outros. Na formação e manutenção do capitalismo, traço muito marcante no Brasil, o racismo teve o papel de justificar a expansão colonial e o processo de acumulação primitiva dos estados europeus, e tornou-se estrutural na exploração de classe e na manutenção do status quo. É elemento da gênese e o sangue desse organismo, algo vital que permite e justifica a colonização, a desigualdade gritante e exacerbada dos centros capitalistas e suas periferias, a superexploração e outras contradições da qual a população brasileira e outras não brancas ao redor do mundo sofrem. 

Para o Leandro Konder, filósofo Brasileiro, o fascismo não é apenas uma ideologia da direita que utiliza a violência, perseguição e assassinato de opositores para conservação do status quo capitalista (por mais extrema e escarnecedora que essa violência possa ser). Em suas palavras observando seus expoentes europeus do gênero, “O fascismo representou, na história contemporânea da direita, uma energética tentativa no sentido de superar a situação altamente insatisfatória que a contradição de que vínhamos falando tinha criado para as forças conservadoras mais resolutas. Enfrentando os problemas das tensões que se haviam criado no âmbito da direita entre a teoria e a prática, o fascismo adotou a solução do pragmatismo radical, servindo-se de uma teoria que legitimava a emasculação da teoria em geral.” [1].

Partindo disso e tendo em vista às peculiaridades da formação capitalista dependente brasileira, esse pragmatismo radical do qual as forças fascista se utilizam, se firmam sobre um caráter já latente na sociedade, o racismo. Não representando apenas uma extensão dos mecanismos e tecnologias de opressão e perseguição estatal, que antes estavam restritos aos corpos negros, à população e aos agentes políticos brancos, e não negros. Estende essa violência a esses grupos outrora protegidos pelo status quo racial, mas principalmente reforça, justifica e aumenta o terrorismo de estado a negras e negros.

Apesar da polemica se o regime burgo-militar (1964 – 1985) foi um regime fascista ou não, os aparatos repressivos estruturados durante esse período nos apresentam um exemplo histórico. Na memoria coletiva desse lúgubre episodio da nossa historia, ficaram marcadas as grandes perseguições que ocorreram a agentes políticos e partidos de esquerda, porem rotineiramente se esquecem dos famosos grupos de extermínio como os 12 homens de ouro, Scuderie Detetive Le Cocq entre outros que surgiram pelo Brasil no período. Que tinham uma dupla função, perseguir e assassinar inimigos do regime, e “controlar a criminalidade” nos grandes centros urbanos, “controle” esse feito com base em uma politica de extermínio contra população pobre e periférica, portanto negra. Formados em sua maioria por policiais civis e militares muitas vezes validados e financiados abertamente por agentes do estado brasileiro.

Tal pratica não cessou, mesmo após o fim do regime. Mas se mantinha na margem da criminalidade, porem juntamente com a ascensão do fascista Jair Bolsonaro grupos de milicianos, análogos aos grupos de extermínios, até mais estruturados, voltaram a emergir para superfície, a já não se estranha quando vemos Bolsonaro e seus lacaios defenderem a legalização de tais grupos, que já constituem um importante braço armado do mesmo. 

No Rio de Janeiro, onde há anos a população periférica é assolada por uma serie de politicas de estado assassinas, que não cessaram nem sob os governos de traços mais “progressistas” . O outro grande expoente do fascismo tropical, Wilson Witzel, que se elegeu com base em slogans como “No meu governo a Policia vai mirar na cabecinha e…fogo”, encerrou seu primeiro ano como governador do estado com recordes históricos nas mortes efetuadas pela policia. Mortes essas como das crianças negras, Ágatha Felix e João Pedro, respectivamente com 8 e 14 anos de idade, entre muitos outros casos.

Logo a exposição de tais fatos tem como função procurar demonstrar que a luta antifascista no Brasil não pode existir sem o antirracismo, e que ambas devem estar atravessadas por um profundo senso anticapitalista. Devemos rejeitar qualquer visão antifascista de mercado, que reduza tal movimento histórico a simples estética vendável de revolta.

Pois se no fascismo, fase superior do capitalismo, esse sistema frente a sua falência completa, responde ao povo, sobretudo ao povo preto, com a morte e a perseguição em níveis estratosféricos, a experiência histórica nos mostra que a Democracia Burguesa não é capaz de abarcar e dissolver tais contradições, quando muito as atenua, até que as serpentes voltem a eclodir dos ovos.

Só compreendendo profundamente o papel do racismo na formação e perpetuação do capital, fugindo da ilusão de volta a um passado idílico de democracia liberal burguesa, pode-se pensar em uma tática que nos tire dessa encruzilhada, nos coloque no rumo do socialismo, no rumo da libertação humana.

[1] Leandro Konder, Introdução ao fascismo, pg.29