por Yan Victor 

[Entrevista realizada por telefone e por escrito; julho/agosto de 2020]

Na coluna desse mês damos sequência à segunda parte da entrevista com Yuri Martins-Fontes. Na primeira parte Uma conversa com o filósofo e escritor Yuri Martins-Fontes: Marxismo, Crise e Pandemia (parte I), o filósofo e escritor fez uma análise da conjuntura brasileira fazendo um balanço crítico da derrocada da estratégia democrático-popular e os desafios da esquerda nessa trama conjuntural. Nos brindou também com alguns comentários sobre a teoria marxista do valor, trazendo exemplos concretos de sua atualidade na realidade brasileira, sobretudo quando se intensifica sua face mais atroz, a saber: a intensificação da superexploração da força de trabalho, aumento do desemprego estrutural e dilapidação dos recursos naturais, esses ampliados com os desdobramentos da pandemia da covid-19.

Na esteira dessa primeira edição, agora Yuri nos apresenta uma leitura sobre Nossa América. Em um primeiro momento, o filósofo comenta sobre aqueles que identifica como sendo dois dos pensadores mais profundos e originais do período de formação do marxismo na América Latina: Caio Prado Júnior e José Carlos Mariátegui. Yuri nos fala sobre a pertinência de Caio Prado e Mariátegui na superação de uma concepção etapista e eurocêntrica, que importava modelos estrangeiros e analisava os processos de transformações sociais na América Latina como equação automática. O leitor encontrará a singularidade de Caio Prado e Mariátegui a esse respeito. 

Em um segundo momento, temos produções mais recentes apresentadas em primeira mão ao Portal Poder Popular – MG. Transcrevemos a fala de Yuri sobre seu “Relatório Final de Pós-Doutorado”, finalizado em 2017 na Universidade de São Paulo, sobre o tema: Marxismo e Saberes Originários: das afinidades entre os outros saberes e a concepção histórico-dialética. Aí temos um breve depoimento sobre as afinidades do pensamento, outrora chamado por Lévi-Strauss de pensamento selvagem, com a perspectiva histórica e ecológica de matriz marxista. Aporte esse que chega em boa hora, momento crítico em que lideranças indígenas, como Davi Kopenawa, denunciam o caráter destrutivo da civilização capitalista e profetizam a proximidade de seu fim (o que ficou conhecido como “a queda do céu”). 

A entrevista ganha um caráter etnográfico, ou mesmo biográfico, quando Yuri conta sobre suas viagens pela América. Escritor apaixonado pela “Pátria Grande”, claramente influenciado pelo romantismo socialista de Mariátegui, Yuri fala sobre suas viagens e suas experiências com os Zapatistas no México e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC-EP. 

Essas viagens somadas a outras andanças que vão de São Paulo até o México, por terra e água, entre 2001 e 2002; e que depois continuam entre o Cone Sul e o Brasil do rio São Francisco e litoral; e que chegam a uma grande travessia feita de 2006 a 2007 desde a Europa até a Ásia, passando pelo Chifre da África, possui aspectos centrais na trajetória de vida do militante. Sob a verve crítica do escritor, essas viagens serviram de base histórica para contos, relatos e crônicas de viagens em um livro de três volumes de cunho literário, cuja publicação está próxima.

Por fim, finalizamos a entrevista com uma pergunta sobre o horizonte Latino Americano. Lá o leitor encontrará algo similar ao que foi dito outrora por Marx, já no fim de sua vida (entrevista de Marx cedida ao jornalista John Swinton, em agosto de 1880). O jornalista perguntara: Qual a lei última do ser? E Marx respondera: A Luta! Há mais de um século desta resposta, embora o horizonte de futuro latino-americano não seja muito animador: “seguiremos de cabeça alta” nos diz o entrevistado. E seguir aqui significa Lutar!

MARXISMO e AMÉRICA LATINA

1. Em 2018 a editora Alameda, com apoio da FAPESP, publicou seu livro Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui, que é resultado de tese de doutorado na Universidade de São Paulo. Qual a pertinência desses dois autores para o marxismo latino-americano? O que eles têm de mais atual, que possa nos auxiliar a pensar o que estamos vivendo no Brasil e na América Latina de hoje?

Sim, Yan, o livro é fruto desta tese, em que tive a oportunidade de ser orientado por dois professores que são grandes  conhecedores dos temas do marxismo na América. O Lincoln Secco, professor de História na FFLCH, autor de várias obras sobre Caio Prado. E o Michael Löwy, professor brasileiro radicado na França que embora não seja especificamente um estudioso do Mariátegui, tem alguns interessantes artigos a seu respeito, e me recebeu para um estágio doutoral junto ao Centre National de la Recherche Scietifique; este contato permitiu que juntos desenvolvêssemos um interessante debate, através de um seminário semanal supervisionado por ele, sobre marxismo latino-americano, incluindo outros pesquisadores brasileiros que também estavam em Paris à época. Foi uma oportunidade para que todos aprendêssemos muito sobre este autor peruano genial e ainda pouco conhecido entre nós. A pesquisa foi favorecida também pelo fato de Paris ser uma enorme biblioteca, onde se encontram livros raros e inumeráveis pesquisas – e mesmo documentos históricos adquiridos ou roubados pelo colonialismo francês – material de pesquisa sobre tudo que se possa imaginar, inclusive sobre o marxismo latino-americano, pesquisas produzidas no mundo todo, a que pude ter acesso. 

Ao final, a pesquisa doutoral foi recomendada à publicação pela banca, e obteve apoio da Fapesp, sendo publicada em 2017 em primeira impressão, e em 2018 em edição definitiva.

Sobre o Caio Prado e o Mariátegui, eles figuram entre os grandes pilares do marxismo na América, dois pensadores que estão entre os primeiros que pensaram – desde uma ótica propriamente americana – o ferramental materialista-histórico iniciado por Marx e Engels. 

Os dois marxistas, como poucos outros do início do século XX, foram pioneiros em aplicar o marxismo de maneira autêntica a nossa realidade histórica – tão distinta da europeia –, evitando copiar soluções estrangeiras que não cabiam em nosso contexto. 

Por exemplo, não tivemos na América o feudalismo, como bem nota Caio Prado (em “A Revolução Brasileira”, de 1966, dentre outras obras), mas sim o escravismo, e portanto nossa “evolução” não foi nem poderia ser semelhante à da Europa. 

Uma ideia central na obra de Caio, mas também presente em Mariátegui, é a de que nossas sociedades americanas estavam incluídas desde sempre, subalternamente é claro, no movimento da consolidação do capitalismo europeu – mesmo antes de sermos propriamente capitalistas. 

Já o pensador peruano considera que, se um dia uma revolução democrática-liberal pôde ter sido necessária entre nós, as elites daqui não foram capazes de realizá-la. Nossas elites nunca foram “nacionalistas”, como as da Europa, ou mesmo da Ásia – povos consolidados há séculos, em que as classes dominantes se identificavam culturalmente com o povo. 

Em seu clássico “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana” (1928), Mariátegui mostra, mediante diversas passagens históricas como nossas classes dominantes eram – e são – xucras, iletradas, fúteis, identificadas sempre com o que é de fora, com o europeu, com a língua de fora, com a cultura de fora; pensam que são brancos, querem ser loiros, não se enxergam como mestiços, muito menos se veem ao lado de seu povo. Caio Prado diz algo bem parecido sobre as elites brasileiras: ignorantes, sem projeto de país, sem identificação com a nação.

Mariátegui põe também sua atenção no aspecto “socialista agrário” da cultura indígena andina, que jamais aceitou nem assimilou os vícios “individualistas”, as imposições da cultura ocidental. Ele acredita que aí está o germe de nossa Revolução Americana: a tradição comunal.

Neste trabalho, dou atenção a um ponto crucial, uma concepção que converge no pensamento de ambos e os aproxima de outros dos grandes pensadores do marxismo universal, Gramsci e Lênin: nossas revoluções foram feitas “pelo alto” – foram movimentos liderados por cima, por facções menos medíocres da burguesia que perceberam que sem mínimas reformas, sem que se cedesse um pouco às classes populares, não se poderia avançar a independência política e o capitalismo. Assim, certas frações das elites, ao permitirem e mesmo dirigirem as mudanças que urgiam, apaziguaram momentaneamente as revoltas da população. 

Algo semelhante ao que fez – novamente – no Brasil parte do empresariado “progressista”, ao apoiar o projeto de reformas urgentes do desenvolvimentismo social petista, quando viam que já não podiam mais, por vias eleitorais, resistir à ascensão democrática de Lula: primeiramente se aliaram, depois impuseram mediante táticas das mais sujas, suas pautas. 

E disso tratam nossos dois autores: com tantas diferenças entre América e Europa, a consequência é que tampouco nossos passos revolucionários teriam de ser os mesmos que os dos europeus. Se lá fora eles passaram pelo capitalismo através de revoluções liberais, no nosso caso a situação era toda outra: e portanto eles se colocam contra as “alianças” com a burguesia supostamente “nacional”. Não existe “burguesia nacional”. Embora ambos defendam alianças pontuais de urgência – para amparar os mais vulneráveis –, o projeto político de país, dizem, não pode nunca se subordinar às classes dominantes. 

Lamentavelmente, o PT descobriu tarde demais que obter o governo não é deter o poder. Caio Prado mostra com números que a consolidação do capitalismo no Brasil – periferia do sistema – chegou mesmo a “piorar” a condição de certos dos trabalhadores, anteriormente meeiros, agora boias-frias famintos. 

Mariátegui mostra que o capitalismo quase destroçou as comunidades democráticas e autossustentáveis andinas, que só não se perderam porque mantiveram sua unidade, sua fé racional – agora em um novo mito: o da liberdade, o da revolução que reergueria seu povo e cultura.

2- Yuri, em termos de projeto político, você diria que as obras de Caio Prado e Mariátegui se aproximam de uma democracia radical com meta socialista? Ou compreendiam que em Nuestra América existia a possibilidade de transição a uma sociedade para além do capitalismo de bases coloniais? 

Como marxistas, ambos têm por meta a implementação de uma sociedade socialista. Porém não são ingênuos, e sabem que não basta gritar pelo socialismo para se conseguir levar a cabo uma efetiva revolução. Mariátegui entende que a oportunidade que a burguesia peruana teve outrora de realizar certas tarefas democráticas se perdeu, e que cabe agora aos socialistas levarem adiante tais tarefas, e aprofundá-las rumo ao socialismo. Caio Prado entende que é inócuo tentar definir profeticamente a forma como se dará uma revolução, de modo que a tarefa socialista é realizá-la paulatinamente mediante tarefas básicas, estando-se sempre atento às oportunidades de avançar o processo — ele cita a Revolução Cubana como exemplo de uma revolução que não se nomeou “socialista”, mas que se tornou socialista do seu percurso.

Para ambos, a tarefa do revolucionário consiste em mirar o socialismo, rumar no sentido de suas pautas, observar com atenção suas oportunidades de avanço revolucionário, realizando no dia a dia tarefas de urgência que possibilitem paulatinamente melhorar a situação miserável da maioria da classe trabalhadora do campo e da cidade, de modo a aumentar a conscientização popular acerca de seu problema. 

Como diz o Caio Prado (em entrevista a revista da Filosofia-USP), quando tivermos algumas dezenas de milhares homens dispostos a pegar em armas, a tarefa comunista será ajudar a armá-los; antes disso, precisamos lutar por condições para que sobrevivam, tenham direitos mínimos, e obtenham maior noção acerca da exploração que sofrem. Em suma, é preciso construir a situação revolucionária, não apenas falar dela.    

3. Um dos elementos presentes na obra de Mariátegui é a questão indígena. Em 2017 você terminou seu trabalho de pós-doutoramento sobre marxismo e saberes originários. Atualmente algumas lideranças indígenas (estou pensando em Davi Kopenawa e Ailton Krenak) vêm ganhando espaço em análises sobre a conjuntura, produzindo livros que criticam duramente a civilização moderna, capitalista e ocidental. Quais os caminhos e desafios para trabalhar com a questão indígena em países periféricos como o Brasil a partir do referencial marxista?

A crise estrutural do capitalismo de que falávamos, é uma crise também da própria civilização moderna, que, como expõe o historiador Koselleck, nasceu cheia de promessas de liberdade e desenvolvimento social jamais realizadas. Pelo contrário, vivemos numa sociedade cada vez mais destrutiva, controladora. 

“A natureza está ameaçada”, diz a grande mídia pseudo-ambiental, supostamente preocupada. Mas o que isso quer dizer, senão que o homem, ou a grande maioria da espécie, está ameaçada por um sistema que em nome de benefícios de poucas megacorporações, de mafiosos-abutres, agride, desregula o equilíbrio do metabolismo entre o homem e a natureza?

Diante disso, as sociedades originárias, com seus modelos de produção sustentável, com sua prática democrática cotidiana, têm muito a nos ensinar. E já estão ensinando. Veja-se a produção de alimentos saudáveis, sem venenos, sem câncer. Ou o refluxo que vem ocorrendo nas últimas décadas da urbe para o campo, com vistas a uma vida mais saudável. Não é um retorno ao rural profundo; é um rural que se usa sim de alguma tecnologia, mas sem uma extrema dependência dela. 

Com suas práticas saudáveis, sustentáveis, limpas, democráticas, o discurso ambientalista tem conseguido obter vitórias. Esses movimentos ligados à terra são o que o Joan Alier chama de “ecologistas populares”, são sociedades que são ambientalistas não só por decisão ética e racional, mas porque deste modo estão a defender suas próprias vidas, os territórios em que vivem, os recursos naturais de que vivem, seus filhos, a espécie. 

Quanto a este pós-doutorado que você mencionou, Yan, tive a supervisão do professor Paulo Arantes, estudei a convergência entre os saberes indígenas e o marxismo. No percurso, tentei traçar o histórico de como o dito “Ocidente” calou e pilhou os saberes originários, que em muitos aspectos era superior ao conhecimento europeu à época. Por exemplo, tem um tal Claude d’Abbeville, francês que chegou na América em 1500 e pouco, mais precisamente no litoral sudeste do que hoje é o Brasil; e ele em cartas zomba dos tupis por eles “acreditarem que a lua influenciaria as marés” – algo hoje óbvio mas que entre os ocidentais só será comprovado mais de meio século depois, por Newton. 

Isso mostra muito! Mostra a extrema falta de alteridade ocidental. Mas mostra também a grande ignorância dos europeus não só quanto à astronomia, mas à agronomia, aos alimentos! Não à toa, Josué de Castro, em sua clássica obra “Geopolítica da fome”, afirma que a Europa foi o continente que mais sofreu com a fome ao longo da história. 

Contudo, aconteceu que esta Europa – que era periférica no século XV, num mundo cujo centro estava entre a Pérsia e a Índia – esta Europa estagnada, até mesmo por estar alienada do crescente comércio global que emergia se aventurou ao mar: ou melhor, o mais periférico país europeu, o mais excluído, o mais sem saída, se lançou ao mar, e cruzou o mítico cabo do Bojador, enfrentou a morte, a dor, como diz Pessoa, e alcançou a América, usando-se para tanto da bússola dos chineses, da matemática dos egípcios, das armas de aço que tinham conhecido através dos povos da Ásia Menor, no milenar comércio afroeurasiático. 

Já os povos americanos, em seu continente isolado, se desenvolveram enormemente em agronomia, astronomia, nutrição, medicina, psicologia, e mesmo política, mas não tinham o aço, não puderam ter tantos contatos com tantos povos quanto os europeus. 

A partir daí, da invasão da América, é que a Europa começa a se tornar o centro do mundo: após pilhar as riquezas indígenas, e mais que isso, após aprender e roubar seus saberes, seus conhecimentos preciosos. E daí que os europeus obtêm recursos para investir em suas revoluções Científica e Industrial! 

Foi a batata dos que consideravam ignorantes adoradores do sol, que matou a fome histórica dos “doutos” cristãos adoradores do deus-correto – me refiro a este todo-poderoso que fez a mulher de um osso do homem pra depois aterrorizar Sodoma entre uns e outros milagres. 

Foram as riquezas roubadas da América que permitiram aos europeus, alguns séculos depois, superarem seus concorrentes chineses, indianos, e se tornarem o centro do novo mundo moderno… 

E isto dura até a Segunda Guerra, quando cedem o posto pros EUA, passando a ser apenas sócios menores. Mas isso começa a mudar. A China e a Rússia ascendem, os EUA declinam. 

E o Brasil que estava junto aos emergentes BRICS, crescendo, está agora lançado por uma elite mesquinha nesta miséria inominável…  

LITERATURA e AMÉRICA LATINA

4. Yuri, recentemente você vem se ocupando de um trabalho literário que tem como mote uma grande viagem sua pela América Latina, na qual você esteve em países como Venezuela, México, Colômbia, Perú, além da América Central. Poderia nos dizer o que podemos esperar desta narrativa? O leitor encontrará algo sobre sua estadia com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC-EP), ou sobre sua visita aos Zapatistas?

Sim, Yan, trata-se de uma narrativa baseada em algumas grandes viagens solo que realizei ao longo de meus trinta anos, na primeira década deste século, quase sempre por meio de transportes públicos locais, ônibus, barcos, trens, além de caronas. Entre idas e vindas, foram uns cinco anos de estradas, rios, mares. Dentre várias viagens menores, há duas expedições de cerca de um ano cada pela nossa América, uma de São Paulo ao deserto do Norte do México, outra pelo Cone Sul e o Sertão brasileiro; e por fim a maior viagem, de um ano e meio, em que atravessei o imenso continente conjugado da Afroeurásia, caminhando de Lisboa até Nova Delhi, percorrendo por terra e água toda a Europa latina e eslava, cruzando o Bósforo e o Oriente Médio, a Síria antes da destruição, entrando na África pelo Egito, subindo o Nilo rumo ao Sudão, Etiópia, e atravessando o Mar Vermelho num barco de gado rumo ao Iêmem, antes de chegar ao Mar da Arábia e por fim à Índia…

À volta, em 2007, trouxe comigo dezenas de milhares de fotografias e algumas dezenas de cadernos manuscritos, além de alguns idiomas. Realizei algumas exposições fotojornalísticas e em museus, e publiquei artigos, crônicas políticas, reportagens, mas por motivos materiais e políticos, tive de adiar a escrita desta grande narrativa como um todo, o que envolveria um tempo enorme. Retomei assim minha militância junto ao movimento de cursinhos populares, e comecei a dar aulas em faculdades e a trabalhar como tradutor, além de retomar atividades como revisor e jornalista de redação.

De início eu pensava formatar estas histórias enquanto crônicas de viagem, mas depois, envolvendo-me mais com a poesia, a prosa literária, me permiti certa liberdade autoral.  Descrevo um pouco desta aventura em minha página pessoal Travessias.

Dada a dimensão um tanto épica dessas viagens, resolvi dividi a narrativa em três volumes: um primeiro sobre a América de Sul a Norte; um segundo sobre o Cone Sul e o Brasil do rio São Francisco e litoral; e a terceira é esta grande travessia feita de 2006 a 2007 desde a Europa até a Ásia, passando pelo Chifre da África. 

O primeiro livro é sobre esta viagem que você mencionou, de São Paulo até o México, por terra e água, entre 2001 e 2002. Deve estar pronto daqui a alguns meses, oxalá. Estou revisando pela enésima vez… É neste livro inicial em que conto dessa estadia junto às FARC-Exército do Povo, em que passei cerca de um mês com os guerrilheiros, tendo vivido no acampamento de selva comandado pelo grande líder fariano e responsável pelas relações exteriores da guerrilha, o comandante Raúl Reyes, nas montanhas da alta floresta amazônica. 

Lá fui muito bem recebido e pude entrevistar este famoso comandante, que uns anos depois foi morto em um ataque traiçoeiro orquestrado pelos EUA no território do Equador, invasão que quase causou uma guerra com a Colômbia. 

Além dele entrevistei também guerrilheiros comuns, conhecendo detalhes das histórias desses homens e mulheres que entregaram suas vidas por uma causa, muitos por idealismo, outros por necessidade, num país mais desgraçado e desigual que o Brasil. Um deles me disse: “Não tive estudo, não pude conhecer bem o que é o comunismo, mas sei que na miséria extrema em que eu e minha família vivíamos, não era mais possível deixar de tentar fazer algo”. 

Estive também com povos indígenas na Amazônia, em acampamento do MST, e travei contato com membros dos Zapatistas, no estado de Chiapas, no México, além de ter podido visitar Cuba ainda com o lendário comandante-em-chefe Fidel Castro vivo, a quem infelizmente não falei nem fotografei, apesar de ao menos ter podido sorrir ao ver a ponta de sua imensa barba branca dentro de um carro, num dia em que ele foi à televisão estatal falar à nação, após um dos tantos atentados dos mercenários de Miami em Havana, quando destruíram a embaixada mexicana. 

5. Sobre seus escritos de maneira geral, na filosofia, na literatura, você poderia nos contar algo sobre os grandes autores, pensadores, escritores, que lhe influenciaram, recomendar alguns que você considera fundamentais à formação contemporânea de um jovem intelectual ou artista crítico?  

Considero essencial a qualquer um, se desenvolver em todas as potencialidades humanas, o intelecto, os sentimentos, o corpo, a imaginação. Creio que essa busca pelo equilíbrio favorece qualquer atividade a que nos dediquemos. Creio que um intelectual, um escritor, um militante não podem ser pessoas bitoladas, fechadas às novas experiências, às ricas possibilidades que a existência real e única pode possibilitar. Infelizmente ainda há muito conservadorismo social, muito moralismo raso, na chamada “esquerda” política. 

Bem, sobre aqueles que me influenciaram – digo influência no sentido não de devoção, mas de abertura de horizontes para que eu pudesse melhor elaborar minhas próprias concepções –, enquanto pensadores teóricos, acho a genialidade do Marx sublime: ele mistura na sua escrita erudição e rigor, com ironia, literariedade. Mas também acho o Engels grandioso, um parceiro que além de complementar as ideias do amigo, trouxe contribuições preciosas à filosofia dialética da práxis. E o arguto Lênin, mestre da estratégia, da visão política prática: a arte de saber se comunicar com o povo, que tantos teóricos ensimesmados, socialistas acadêmicos entrincheiradosno conforto asséptico das universidades, passa longe. 

Fora do campo do socialismo, gosto de certas ideias do Nietzsche (aliás, Mariátegui foi um dos primeiros marxistas a analisar a importância de seu pensamento), que apesar de ter um lado bem conservador, é um crítico mordaz da superficialidade, da artificialidade da vida burguesa pobre de espírito, amoral, torpe… Como bem nota o Antonio Candido, ele precisa ser mais lido pelos socialistas. 

Na América, além do Mariátegui e do Caio Prado, cito os cubanos José Martí e o Julio Mella, o argentino Aníbal Ponce, o caribenho Frantz Fanon, o Werneck Sodré, mais recentemente o Florestan Fernandes. São tantos – mereceriam uma outra conversa. 

Na irmã África, com questões bastante próximas às nossas, é preciso conhecer o revolucionário lusófono Amílcar Cabral, o ganense Kwame Nkrumah…    

Na literatura moderna, recomendo o altamente sarcástico crítico da modernidade Heinrich Heine, que tanto Marx como Nietzsche consideravam dentre seus escritores prediletos. O Dostoiévski, que com sua profunda sensibilidade antecipou a psicanálise; o Jack London, um aventureiro que chegou a mendigar, ser pirata, e foi um dos primeiros divulgadores socialistas estadunidenses, escritor de narrativa ágil. Dos de fora, cito ainda a Anais Nin, o Hemingway. 

Já dentre os nossos, aprecio demais Machado, Lima Barreto, Graciliano, o colombiano García Márquez, o paraguaio Roa Bastos, os formidáveis Guimarães e Clarice Lispector, e por que não o também “nosso” Saramago… Todos eles também filósofos, sob a rubrica da literatura. 

Na poesia, nosso povo, nossa língua, menciono Bandeira, Drummond, Pessoa, Mário de Andrade, Vinícius, Cecília Meireles, Florbela Espanca, Ernesto Cardenal, Manoel de Barros, Leminski. Mas também Brecht, Maiakovski…

6. O horizonte de futuro latino-americano não parece muito animador. Você teria alguma avaliação sobre os desafios e perspectivas para nossa América?

A situação está ruim mesmo. Mas não devemos perder a fé nas possibilidades de transformação: digo, a “fé racional”. O mito revolucionário, a esperança na emancipação humana, a utopia real de que nos fala Mariátegui, é um componente imprescindível da luta de um comunista; ao lado da importância de se conhecer a fundo as contradições da realidade. 

Daí a centralidade da categoria da “práxis” no materialismo-histórico: a ideia de que é imprescindível não só refletirmos dialeticamente sobre os conflitos da sociedade, mas efetivamente transformarmos essa sociedade. Ou seja: é preciso tornar “realidade prática” a nossa “teoria”; teoria esta que, por sua vez, foi fundada na prática, no “real”, e portanto, conforme modifiquemos esse real, ela deverá ser novamente teorizada, refinada, sempre.

Por sua própria crise estrutural, de que conversávamos, o capitalismo tende a terminar. Mas não sabemos quando; há que se pressionar, que se apressar este “fim”, e em um sentido socialista. 

Pois veja que tampouco sabemos se o que virá depois (o “pós-capitalismo”) será enfim o socialismo, uma forma mais democrática e solidária e racional de se produzir e gerir a sociedade, ou se será um regime ainda mais autoritário, mais iníquo que o atual, uma espécie de império de meia-dúzia de monopólios associados. Somente a luta dirá o novo “sentido da história” (conforme o conceito caiopradiano).

Ainda que a informática, a internete, sejam bem pouco democráticas e sirvam para as corporações arrebanharem os ingênuos e promoverem a irracionalidade, os povos estão cada vez mais “vacinados”. Já não é tão fácil promover barbaridades como antes. Veja-se estes policiais energúmenos que matam a torto e a direito pelas quebradas: só que hoje eles são filmados pela vizinhança… E aí o bicho pega.

Temos de nos organizar, de nos associarmos a uma causa que sejamos afins, e militarmos por ela, com perseverança, paciência, sem nos iludirmos ou abatermos com vitórias ou derrotas parciais, momentâneas. A história nos dará a vitória – se a espécie sobreviver. Ou senão, pelo menos há a trégua do fim-comum. Mas antes disso seguiremos de cabeça alta e resistindo ao desastre capitalista.