Aos 70 anos, Jose Augusto Bernardes é pré-candidato a prefeito de Betim pelo PCB. Foto: Ana Vieira.

Por Leonardo Godim para O Poder Popular MG.

O frio que se abateu sobre a cidade desde o final de semana ia dando trégua numa tarde de sol forte. Eu ainda estava digerindo a forte impressão que tive das plantas da Fiat e da Refinaria Gabriel Passos, da Petrobras, na estrada de Betim, quando chegamos no nosso destino e fomos recebidos por José Augusto Bernardes, o camarada Zulu. Sua figura simples em poucas horas de conversa se converteu em uma impressão ainda mais forte do que aquela da estrada. Sua história era um testemunho daquela terra e notei que sua grandiosidade ultrapassava qualquer refinaria, qualquer fábrica. Pois ele era testemunho da classe que tornou aquelas grandes construções possíveis.

José foi operário durante quase toda sua vida. Fundou o Sindicato dos Metalúrgicos de Betim em 1979, em plena ditadura militar, e viu a fase ascendente das lutas populares no Brasil. Fundou e dirigiu associações de moradores em Betim por muitos anos, como a da região do PTB. Foi também militante ativo do movimento negro da região e contava contente de sua trajetória de luta contra o racismo. “Onde erramos? É essa a pergunta que me pego tantas vezes tentando responder…”, nos confidenciou. Às vezes, a vida de alguns indivíduos pode ser uma síntese de um capítulo da história de toda uma classe. Era o caso de Zulu, em cuja perplexidade se resumiam embates e desafios que, pude compreender, minha geração terá de elaborar melhores respostas do que aquelas que guiaram as gerações anteriores.

Zulu na fachada do espaço cultural fundado por ele no bairro Niterói, Betim. Foto: Ana Vieira.

Nosso ponto de encontro foi um espaço cultural fundado e mantido por Zulu no bairro Niterói. Instrumentos musicais pintados na parede davam um ar carnavalesco para aquele espaço cultural em um bairro simples da industrial Betim. Além de sediar eventos, o espaço era uma escola de música, com direito a um piano, órgão, percussões, violão e cavaquinho – ao que pude ver em minha curta visita. Curioso com o evidente amor pela música presente naquele espaço, descobri outra face do operário Zulu.

Zulu é músico. Músico profissional, contou sobre o que era ser compositor na época da ditadura e mostrou seus arquivos, com letras e cifras carimbadas pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas. Buscou uma música sua que fora censurada,  mas não a achou em meio a seu vasto arquivo. Contou que chegou perto de abandonar a vida de operário para dedicar-se à música, mas viu que muitos grandes músicos de nossa história não receberam durante a vida o reconhecimento necessário para garantir as contas da casa. Imaginou que se acontecia com seus ídolos, com ele não seria diferente. E assim o Zulu músico continou operário, e lutando. Mas o amor pela música nunca minguou.

Zulu ainda possui os registros de músicas carimbadas pela censura, a capa de um disco de vinil seu e cartazes de apresentações. Foto: Ana Vieira.

Suas histórias quase sempre terminavam com a mesma nota de rodapé. “Você vê como o povo trabalhador desse país sofre?” Este fato estava marcado na sua existência. Mas seu reconhecimento disso não parecia o fazer temer. Pelo contrário. O fazia defender – e repetiu isso muitas vezes no nosso curto tempo lá – que os comunistas tinham o dever de lutar com o povo trabalhador. Afirmava com autoridade que era entre os mais oprimidos da sociedade que nasceria o novo. Estava convencido que aqueles homens e mulheres simples com quem compartilha o sofrimento da barbárie capitalista não tinham nada a perder além de suas correntes.

Aos 70 anos, José Augusto Bernardes, Zulu, é pré-candidato a prefeito da cidade de Betim. Disse energeticamente, enquanto tirávamos as fotos para a pré-campanha, que os comunistas tinham o dever de não abaixar a cabeça. Enquanto a fotógrafa pedia que ele sorrisse e deixasse de conversar, Zulu declarava seu comprometimento com os trabalhadores nessa eleição. Falou sobre as compras de voto, tão comuns em Betim, e disse que nosso trabalho era mostrar aos trabalhadores que existia uma alternativa ao jogo sujo da política brasileira. Entre seus causos e piadas, ele demonstrava uma seriedade tremenda. Pois sabe quais são os interesses dos trabalhadores, e sabe quão poderosos são seus inimigos. Maldizia os que traem os trabalhadores como quem, provavelmente, já viu isso se repetir inúmeras vezes. E do alto de sua sabedoria, anunciava: venceremos!

Em uma das paredes do espaço cultura, uma bandeira da África foi pintada, com as várias nacionalides africanas e a divisão do continente pelos países imperialistas. Para Zulu, a memória é uma grande arma dos oprimidos, e faz questão de estimular isso em seu trabalho de base. Foto: Ana Vieira.