Luiza Miranda*

Diante da condição pandêmica atual propiciada pelo novo coronavírus, que se espraia celeremente pelo mundo, não tem sido incomum ouvirmos, principalmente por parte de alguns monopólios da mídia, que o vírus é democrático, podendo infectar a todos e todas. Bom, a partir de uma ótica biologicista, essa poderia ser uma afirmação verdadeira, mas tomando como ponto de partida e como critério da verdade a realidade em sua concretude, a pandemia da COVID-19, pedagógica e didaticamente, evidencia que nossa saúde é um produto histórico-social, não podendo ser vista de forma apartada e alheia ao contexto em que, dialeticamente, produzimos ao passo em que também somos por ele conformados. Embora seja hegemonicamente compreendida como tal, a saúde não é um atributo individual, intrapsíquico, ensimesmado, autogovernável e circunscrito no âmbito do terreno das individualidades. Enquanto seres sociais, nossa saúde e subjetividade são indissociáveis da maneira pela qual (re)produzimos nossa existência material e nossa relação com os outros, com a natureza e com as coisas. 

Não se trata de uma relação estática, mecânica e de um simples reflexo da materialidade, mas de uma relação dialética entre objetividade-subjetividade. Assim, mesmo aquilo que tem uma base biológica, anatômica ou fisiológica, com o salto ontológico a partir do intercâmbio entre homem e natureza, se torna um pressuposto, mas não a essência, de tal forma que, a exemplo, não é incorreto afirmar que, até mesmo nossos sentidos, são também sociais. A forma como o gênero humano vive transforma inclusive as bases de sua própria anatomia. Trata-se, segundo Marx, do afastamento das barreiras biológicas, que se coloca de forma cada vez mais acentuada sem significar, de forma alguma, a supressão da própria biologia[1]. Nesse sentido, um vírus, uma coisa acelular nanomilimétrica, mais simples que uma célula e desprovido de conhecimentos de economia política[2], não seleciona qual organismo atingir, ao contrário, é a forma como nos constituímos social e historicamente que determina que uns serão mais infectados, padecerão e morrerão mais do que outros. 

Nesse sentido, negamos a possibilidade de um hiato entre indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade. Não há sujeito sem objeto e objeto sem sujeito. É peremptório contestar as afirmações que giram em torno de uma natureza humana a-histórica, perene e estática como constituinte, bem como as de trato dos fenômenos como formas interiorizadas e descoladas da realidade na qual estes se produzem e são reproduzidos. Trata-se do rompimento com a hegemônica concepção liberal de homem e sociedade que perfaz o campo psi, o mesmo que localiza a essência do indivíduo dentro dele mesmo como no caso do Barão de Münchhausen – aquele que, afundando no pântano, salva a si mesmo puxando-se pelos próprios cabelos -, uma metáfora para a ideia de homem autodeterminado, movido unicamente por forças interiores e descolado das condições sociais, produzido num vácuo sócio-histórico.

Ao falarmos de saúde mental, fazemos um uso crítico do termo, uma vez que não existe uma saúde apenas mental, descolada das determinações estruturantes de nossa sociabilidade e de forma cartesiana, cindindo e clivando mente e corpo. Portanto, não existe uma saúde mental “per si”. Segundo o psicólogo Martín-Baró, crítico às concepções assépticas de ciência e teórico da chamada Psicologia da Libertação, cujas contribuições são essenciais para uma Psicologia dos e para “os condenados da terra” – alusão ao título da última e primorosa obra de Franz Fanon que se baseia no primeiro verso da Internacional (1871) de Eugène Pottier -, a saúde mental pode ser descrita como: 

“(…) muito mais uma dimensão das relações entre as pessoas e grupos do que um estado individual, ainda que esta dimensão se enraíze de maneira diferente no organismo de cada um dos indivíduos envolvidos nas relações”[3]. 

Portanto, pensar saúde mental pressupõe compreender como o caráter humanizador ou alienante de nossa sociabilidade se materializa nos sujeitos e grupos sociais. Pensar saúde mental é questionar a sociabilidade em que vivemos e em que, ao mesmo tempo, aparta e priva-nos de nossa própria existência e desenvolvimento, com nossas vidas sendo facilmente ceifadas de distintas formas; aquela em que, para a classe trabalhadora, não raro, “não lhe permitiram a vida/e lhe negaram sepultura” como dizem os versos de Pablo Neruda [4]. A saúde mental está, portanto, no interregno da dialética indivíduo-sociedade e, ao compreendê-la dessa forma, as saídas e resoluções deixam de estar circunscritas à esfera individual e às pretensões de “cura”, “tratamento” que não conseguem ultrapassar a noção de sujeito enquanto uma mônada solipsista. Ao revés, conceber qualquer tipo de saída única e exclusivamente no âmbito das individualidades é uma contradição em termos, pois:

“Neste mundo distorcido, o indivíduo desesperado procura uma saída individual, no entanto, ele não a encontra. Ele não pode encontrá-la, pois questões sociais não podem ser resolvidas individualmente” [5].

O filósofo húngaro György Lukács, autor da frase acima, em sua ontologia do ser social qualifica como abstrações vazias o homem – aqui compreendido enquanto gênero humano – fora da sociedade, bem como a sociedade à parte do homem. Não existe subjetividade que não seja social em suas raízes e determinações mais profundas e “a mais simples análise do ser do homem, do trabalho e da práxis mostra isso de modo irrefutável” [6]. Tomando como exemplo o trabalho, uma autoatividade que no capitalismo torna-se algo hostil ao próprio trabalhador, nele tem-se origem uma das manifestações da alienação, fenômeno histórico-social onde os produtores se distanciam e não se reconhecem naquilo que produziram, de modo que esses produtos do trabalho se voltam contra eles próprios com uma potência hostil. As mercadorias passam a ter, e efetivamente exercem sobre os seus produtores, um poder autônomo, aquilo que Marx denominou como fetichismo da mercadoria. No interior do capital, o fetichismo alcança sua máxima gradação, com as relações sociais tomando a aparência de relações entre coisas, o “ter” subordinando o “ser”. 

Essa subordinação do “ser” ao “ter”, representa na vida dos homens uma força motriz determinante para o estranhamento, isto é, para o descompasso entre o desenvolvimento das capacidades humanas pelas forças produtivas versus a conservação e esfacelamento das subjetividades. Embora objetividade e subjetividade sejam dimensões indissociáveis, não quer dizer que entre elas não possam haver contradições e diferenças significativas que impõe questões e limitações para nossa própria constituição enquanto seres sociais. Ainda sobre o trabalho, que Marx compara ao um vampiro que só existe sugando trabalho vivo e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga, o próprio tempo destinado à ele, ao trabalho, cada vez mais sujeito ao prolongamento das jornadas e à intensificação do mesmo, é também uma forma marcante de estranhamento: 

“Um homem que não tem tempo livre (…) é menos do que uma besta de carga. É uma mera máquina de produzir riqueza alheia, derreada no corpo e embrutecida no espírito. E, contudo, toda a história da indústria moderna mostra que o capital, se não for refreado, trabalhará sem descanso e sem compaixão para reduzir toda a classe operária ao estado extremo da degradação” [7].

Isso ocorre porque níveis de regressão da sociabilidade podem coexistir e coexistem com altos níveis de desenvolvimento do capitalismo e a barbarização da vida social pode ser aferida justamente pela medida em que as necessidades humanas são de tal modo degradadas que sua satisfação retrocede ao nível mais primário, natural e animal. Dessa forma, o adoecimento, as enfermidades, os comprometimentos que nos levam à caracterização como um “problema de saúde mental” não são e não podem ser analisados e quiçá enfrentados se os tomarmos como raios em céu azul. Ainda segundo Baró, a neurose de um indivíduo é, antes de tudo, a enfermidade da sociedade [8]. As subjetividades, as personalidades e a forma como estas surgem, desdobram e definham só podem ocorrer em um campo de ação histórico-social concreto e específico, no momento atual, no modo de produção capitalista atravessado por uma conjuntura de crise econômica, política e sanitária, ou resumidamente, por uma crise do capitalismo! 

A crise atual não é acidente de percurso, anomalia, excepcionalidade ou parte de um movimento independente do capital. Mesmo a pandemia que oriunda de um vírus, assume as determinações histórico-sociais do momento e, portanto, implica em efeitos nefastos no bojo do capital que a tudo fagocita em nome do lucro, mesmo que para isso tenha que cometer os crimes mais hediondos. Como se não bastasse a curva ascendente de infectados em nosso país, não só pela alta transmissibilidade do vírus, mas muito mais pelas condições que propiciaram a sua disseminação, cenário que poderia ter sido evitado e controlado com planejamento, medidas firmes de isolamento e garantia de condições materiais para tal, testagem em massa, revogação da EC 95 que congelou os gastos em saúde etc., alguns estudos e profissionais vêm alertando sobre a crescente dos casos de adoecimento no período da pandemia e para além dela, envolvendo altos índices de ansiedade e depressão[9], bem como aumento no consumo de álcool e outras drogas[10]. Para tanto, são veiculadas algumas “saídas”: manter uma rotina, hábitos saudáveis de alimentação e sono, estar em contato com amigos e familiares por meio do telefone e de videochamadas, não absorver informações em excesso, autocuidado etc. Embora sejam medidas importantes, é preciso salientar as profundas limitações do trato dessa questão a partir de uma ótica individualista de saúde mental, assim como questionar a quem estas medidas servem ou para quem estas podem se concretizar de fato. 

Para a maioria da população brasileira que luta cotidianamente para sobreviver, convivendo não só com o vírus de agora, mas com a infecção do capitalismo em nosso organismo social que produz o desemprego estrutural, a falta de garantias trabalhistas, postos precarizados e de esdrúxula remuneração e as experiências recentes de humilhação nas filas da fome em frente às agências da Caixa Econômica Federal para obter a quantia ineficiente e já prevista para encerramento do auxílio emergencial, dentre inúmeros outros exemplos, a rotina para se manter vivo(a) nunca deixou de existir e nunca foi tão rotineira como no período atual de pandemia e de aprofundamento da crise capitalista. Hábitos saudáveis de alimentação e sono para quem? Metade dos brasileiros sobrevivem com cerca de R$ 413 reais por mês segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua [11], milhões de pessoas estão passando fome ao passo em que toneladas de alimento são descartadas diariamente e, com o teletrabalho e a sobrecarga nos lares em razão da suspensão das aulas e creches, o horário laboral se amplia, se confunde com os momentos voltados para lazer e não raro adentra e ocupa o dia de forma quase que integral, incluindo o período noturno. 

As videochamadas, por sua vez, estão fora do alcance da realidade de muitos brasileiros, 1 em cada 4 não tem acesso[12], e para os demais há dificuldades de acesso à internet de qualidade, serviço este ofertado pelos monopólios de comunicação alvo das privatizações dos últimos anos que levou à destruição do parque industrial e tecnológico das telecomunicações, circunscrevendo-o em um modelo cada vez mais anti-nacional e sucateado. Cabe ressaltar, no entanto, que mesmo com um cenário de crise econômica e mesmo com a falta de acesso por muitos(as) às esses serviços e plataformas, as grandes empresas como a Zoom, plataforma para chamada de vídeos, obteve um lucro líquido de 27 milhões de dólares no primeiro trimestre de 2020, uma alta de 1.127% em relação ao ano passado [13] com um aumento de 22 bilhões no patrimônio de seu fundador [14]. 

Diminuir as informações em excesso sobre a pandemia pode se aplicar para alguns, mas não contempla a realidade daqueles(as) trabalhadores(as) que continuam trabalhando, número cada vez mais crescente em razão da verdadeira sabotagem do isolamento social por parte de várias prefeituras e governos estaduais em conluio com o projeto de genocídio da população brasileira expresso pelo executivo. Como reduzir o acesso à informação sobre a pandemia se ela, agora, assola os atendimentos nos serviços de saúde do país, bem como nos sujeita à uma exposição reiterada ao vírus e à possibilidade de infecção nos mais variados locais de trabalho de nossa classe? Como reduzir o acesso à informação sobre a pandemia pela classe trabalhadora quando quem de fato faz o combate ao novo coronavírus é ela própria sem o amparo de ações efetivas dos governos? Os dados podem ser escondidos, jogados para debaixo do tapete em sites e meios de comunicação, subnotificados e adulterados, mas quem vive e viver, sabe e saberá, lamentavelmente, que não é só uma “gripezinha”. 

Não ignorando as medidas supracitadas, o que se propõe é um exercício reflexivo sobre as limitações destas. A saída não pode ser o subjetivismo, caso contrário, não há saída. Evidentemente que, é necessário galgar uma nova subjetividade junto aos processos de consciência e conscientização no aqui e agora, uma transformação radical da sociedade implica isso, caso contrário, não se tem revolução. Somente com a emancipação humana é possível uma saída efetiva das individualidades. Por isso, é preciso aproveitar a explicitação das contradições do modo de produção capitalista que são suscitadas em períodos de crise tal como vivemos hoje. Embora as crises sejam parte intrínseca do funcionamento desta sociabilidade, possibilitando inclusive uma reanimação e um novo auge do sistema com custos severos aos trabalhadores e trabalhadoras é, também, um momento propício para ir na raiz, isto é, assumir a radicalização e tomar os fenômenos em sua essência e não em sua aparência, uma vez que só assim poderemos compreendê-los e, logo, transformá-los. Transformação esta que viabilize outras formas de nos fazermos enquanto sujeitos, outras subjetividades. Transformação esta que é uma questão, também, de saúde mental. 

“A questão é que talvez os indivíduos não precisem de tratamento, mas a sociedade. E o tratamento da sociedade se chama revolução” [15]. 

Ao invés de nos perguntarmos como curar, (re)inserir e (re)habilitar os sujeitos a essa ordem social desabilitante em sua gênese, devemos nos ocupar com a urgente tarefa de libertação dessa sociabilidade aprisionante, limítrofe, adoecedora e que solapa o humano. O individualismo, o egoísmo, o homem isolado nos leva à um impasse tragicômico e nada resolutivo. É preciso nos implicarmos com outros valores: os de solidariedade, cooperação, coletividade, camaradagem etc. E, para aqueles(as) que estão isolados(as) em suas casas e mesmo para os(as) demais que continuam trabalhando e atuando de maneira central nesse momento dramático, pode parecer que estamos sozinhos(as) e as dificuldades, certamente, se avolumando, entretanto, a união da classe trabalhadora ultrapassa os limites físicos enquanto nossa luta se trava cotidianamente pela disputa de corações e mentes na direção do futuro que a nós pertence. 

“E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência (…) O futuro deve ser uma construção sustentável do homem existente. Esta edificação se liga ao presente, na medida em que coloco-o como algo a ser superado” [16]. 

*Militante do PCB e do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro

Referências:

[1] MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 1844/2010.

[2] https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/17/pre-historia-pos-pandemia-e-o-que-vira/

[3] MARTÍN-BARÓ, I. Guerra e Saúde Mental. In: LACERDA JÚNIOR, Fernando. (Org.). Crítica e libertação na Psicologia: Estudos psicossociais. Petrópolis: Editora Vozes, p. 251-270, 2017. 

[4] NERUDA, P. Memorial de Isla Negra: as memórias de Neruda transformadas em poesia. Porto Alegre: L&PM, p. 43, 2019. 

[5] LUKÁCS, G. Por que a burguesia precisa do desespero? In: ALCÂNTARA, Norma & JIMENEZ, Susana. (Org.). Anuário Lukács 2019. São Paulo: Instituto Lukács, p. 238-247, 2019.

[6] LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, p. 588, 2013.

[7] MARX, K. Salário, preço e lucro. São Paulo: EDIPRO, p. 83, 2004. 

[8] MARTÍN-BARÓ, I. Antipsiquiatria y antipsicoanálisis. ECA,v. 29, n. 293/294, p.203-206, 1973. 

[9] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/05/depressao-brasileiros-isolamento-social-coronavirus.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

[10] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/abuso-de-alcool-e-drogas-tem-alta-na-pandemia.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

[11] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/30/economia/1572454880_959970.html

[12] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet

[13] https://www.infomoney.com.br/mercados/lucro-do-zoom-dispara-mais-de-1-000-no-1o-tri-e-vai-a-us-27-milhoes-com-aumento-de-usuario-em-meio-a-pandemia/

[14] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/criador-do-zoom-fica-us-4-bi-mais-rico-durante-a-pandemia.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

[15] MARTÍN-BARÓ, I. Antipsiquiatria y antipsicoanálisis. ECA,v. 29, n. 293/294, p.203-206, 1973. 

[16] FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, p. 29, 2008.