Ensino remoto e pandemia: um nó que jamais foi um laço1Faço alusão ao poema intitulado “O laço e o abraço”, autoria de Maria Beatriz Marinho dos Anjos. Registrado na Biblioteca Nacional: 568 208 Disponível em: http://livroerrante.blogspot.com/2018/04/o-laco-e-o-abraco-maria-beatriz-marinho.html Acesso em: 24.08.2020.

Osvaldo Teodoro dos Santos Filho

A presente crise do modo de produção capitalista, agravado pela pandemia do novo coronavírus, que configura-se como uma das maiores crises da humanidade, tem produzido efeitos devastadores, sobretudo para a classe trabalhadora. Apesar de muitas afirmações caminharem no sentido de endossar uma suposta natureza democrática do vírus, o que é possível constatar são os impactos, elevados até a última potência, nas camadas mais subalternizadas dos trabalhadores. Portanto, quando essa afirmação não surge de forma ingênua, ela só pode ser notada através das lentes do cinismo.

É sob a égide da obscuridade, em tempos imemoráveis, que somos obrigados, diariamente, a defender o óbvio2Faço alusão a frase: “que tempos são estes em que temos que defender o óbvio?”, atribuída a Bertold Brecht.. Nesse sentido, meses após a constatação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, de mais de 114.000 3No dia 23 de agosto de 2020, os principais meios de comunicação informavam mais de 114.000 mortos no Brasil pela pandemia de COVID-19. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/23/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-23-de-agosto-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml Acesso em: 24.08.2020. mortos e uma média diária superior a 900 mortes provocadas pela pandemia, nos vemos obrigados a refletir sobre a iminência do retorno das aulas presenciais.

Nas mais diferentes esferas da educação, nos confrontamos com uma espécie de nó, que longe de ser um laço, ainda, não sabemos como desatá-lo. Para tentarmos compreender as determinações desta amarração e como esse nó se apertou durante o período da pandemia, faz-se necessário seguirmos algumas pistas. Para tanto, nos apoiaremos nas formulações de Mészáros (2011). De acordo com o filósofo húngaro, de forma diferente de momentos passados nos quais existiam e foram ativadas as possibilidades de se mover as contradições das bases da produção capitalista, a partir da década de 1970, o avanço da composição sociometabólica do capital teria sido elevada aos seus “limites intrínsecos ou absolutos”.

Mészáros (2011, pp.796-797) afirma que esses limites não podem ser ultrapassados sem uma mudança no modo de controle predominante para um modo qualitativamente diferente. Seguindo o caminho pavimentado pelo autor, a atual crise “afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada”. Não teremos condições aqui de adentrar nas determinações históricas, nem análises mais profundas do atual modo produtivo, mas vale ressaltar, de acordo com Iasi (2017, p.67) que,
as determinações mais profundas da crise não podem ser resumidas nos fatores de mero subconsumo de um lado, nem mesmo da superprodução isoladamente de outro, mas na combinação das duas no quadro de uma superacumulação que leva à queda das taxas de lucro.

Fazendo-se valer da sofisticada análise de Mészáros (2011), na constatação permanente de uma crise que afeta de forma articulada todas as partes do complexo em questão e que, de forma inversa a outros momentos, já não é mais possível manejar as contradições das bases da produção capitalistas, na busca pelas amarrações do nó, tomaremos de empréstimo o conceito de crise estrutural do capital.

É importante sublinhar que estamos propondo uma reflexão sobre os caminhos da educação em um período de crise estrutural das formas atuais de produção e reprodução da vida, no qual seus efeitos avassaladores foram amplificados pela pandemia. Dito isto, para que não se inverta os fatos, ressaltamos que para se desemaranhar qualquer nó, faz-se necessário acionar os clássicos. Sendo assim, Marx e Engels (2017, p.27), ao se questionarem sobre as maneiras através das quais a burguesia consegue superar as crises, ainda que de forma momentânea, vão responder: “De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos”.

A destruição das forças produtivas ocorre, na sua forma mais substanciada, nas guerras, mas não somente. Apesar da agenda de guerra nos avizinhar, sobretudo, através dos ataques diários contra a soberania venezuelana4A Venezuela vem sofrendo sucessivas tentativas de golpes de Estado, capitaneadas pelos EUA e com apoio de outros países. Ver: https://theintercept.com/2020/05/11/golpe-fracasso-venezuela-eua/ Acesso em: 24.08.2020., a destruição das forças produtivas ocorre gradativamente, principalmente em países periféricos. Podemos destacar, entre formas variadas, a ação terrorista da Polícia Militar no Brasil que executa a população pobre e negra nos bairros populares em todas as regiões do país5De acordo com relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, negros são 75% dos mortos pela polícia Brasil. Ver: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/negros-sao-75-dos-mortos-pela-policia-no-brasil-aponta-relatorio.htm Acesso em: 24.08.2020..

As conquistas de novos mercados e a intensificação da exploração dos mercados existentes se verificam no Brasil a partir de uma série de contrarreformas que desregularam o trabalho e os mecanismos previdenciários, a partir da pilhagem dos fundos públicos, pela implementação de um novo regime fiscal que limita os investimentos públicos e abre espaços para a iniciativa privada, ou seja, por uma série de mecanismos que se afirmam através da espoliação dos trabalhadores e, por conseguinte, do aumento da extração de mais valor. Vale destacar que nessa tentativa de configurar o Estado no sentido de superar as crises, há necessidade de um complexo ordenamento político/jurídico que põe em xeque até mesmo as formulações liberais recorrentes, uma vez que o Estado se evidencia como um elemento essencial para a superação das crises capitalistas.

O que podemos constatar no presente é a verificação destas ações, não intercaladas ou sobrepostas, mas, articuladas em movimento, ou seja, relacionadas dialeticamente uma com as outras. É no ponto da criação de novos mercados e na intensificação da exploração dos mercados existentes que destacamos a célere implementação do ensino remoto e a súbita preocupação com a educação durante o período da pandemia. Organismos internacionais6Ver: Em defesa da educação pública comprometida com a igualdade social: porque os trabalhadores não devem aceitar aulas remotas. Colemarx, 2020 – Disponível em: http://www.colemarx.com.br/wp-content/uploads/2020/04/Colemarx-textcr%C3%ADtico-EaD-2.pdf, de modo instantâneo, como o Banco Mundial e a OCDE, competentes nas formulações de “antídotos” para os mais variados problemas da ordem capitalista, formalizaram uma série de recomendações para orientar os estados nacionais nas ações necessárias para uma “boa conduta” do processo formal de ensino durante a pandemia. Entre essas recomendações, destacamos: 1] revisão dos marcos regulatórios do ensino à distância – diversos combinados de serviços remotos devem ser chancelados como uma opção para o cumprimento da carga horária mínima exigida; 2] flexibilização dos contratos, da organização e da disposição do trabalho dos professores – o professor poderá ser substituído por atores, músicos, etc., ficando sobre a sua responsabilidade a elucidação de dúvidas e por eventuais contatos com os familiares através de dispositivos eletrônicos; 3] aligeiramento da formação de professores nos cursos de licenciatura, assim como flexibilização nos currículos; 4] flexibilização e regulamentação dos fundos púbicos na medida em que se possa utilizar esses recursos para a formação de tutores e na formulação de alternativa para a formação de professores.

As recomendações dos organismos internacionais se afirmam na direção de escamotear o trabalho do professor e, de forma evidente, através do esvaziamento do sentido da escola. Nesta direção, se evidencia a descartabilidade do professor durante esse processo, reduzindo-o a um vulgar entregador de tarefas e, de maneira desvelada, aprofunda-se a disputa pelos fundos públicos com o objetivo de drenar recursos para as grandes corporações privadas. É importante ressaltar que, como mercadores, o Banco Mundial e a UNESCO ofertavam para diversos países uma lista de serviços e produtos disponibilizados por diferentes fundações ou grupos empresariais. Entre esses grupos destacam-se a Google, Fundação Bill e Melinda Gates, Bank of America, Fundação Lemann e até uma indústria farmacêutica, a Novartis.

Para não perdermos o “fio de meada”, cabe destacar a inserção do país na divisão internacional do trabalho, ou seja, as funções empreendidas pelo Brasil na mundialização do capital conferem, ao longo da história, uma situação de subordinação aos interesses de países imperialistas. Na atual fase produtiva de expansão do capital financeiro e desindustrialização dos países dependentes7Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37432485 Acesso em: 24.08.2020., o Brasil, cada vez mais, limita-se a um papel de exportador de bens primários e encontra-se entregue para a especulação financeira. Desse modo, a escola, para as massas, ainda que nas suas expressões mais rebaixadas, se afasta da sua dimensão necessária no sistema produtivo.

Sobre os efeitos mais diversos da crise estrutural do capital, hipertrofiados pela pandemia, a implementação do ensino remoto, a toque de caixa nas mais diferentes localidades do país, entra em contradição. As exigências para a sua viabilidade não se conformam na vida dos alunos, professores e da sociedade em geral. Portanto, a correspondência de seus ideais entra em choque com as condições concretas da realidade. Entre algumas dessas contradições, é possível destacar: a] ausência/dificuldade de acesso aos meios tecnológicos no Brasil por parte significativa de estudantes e professores8Ver:https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/05/26/66percent-dos-brasileiros-de-9-a-17-anos-nao-acessam-a-internet-em-casa-veja-numeros-que-mostram-dificuldades-no-ensino-a-distancia.ghtml Acesso em: 24.08.2020.; b] a incapacidade do Estado de efetivar de forma satisfatória um sistema tecnológico capaz de atender rapidamente a demanda9Ver:https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/professores-pais-e-alunos-apontam-dificuldades-e-limitacoes-no-ensino-a-distancia. Acesso em: 24.08.2020.; c] pressão pela volta presencial das aulas de modo que as famílias tenham onde deixar os seus filhos e que parte dos trabalhadores possam se apresentar para vender a sua força de trabalho10Ver:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/nas-periferias-de-sp-maes-voltam-ao-trabalho-sem-ter-com-quem-deixar-filhos.shtml Acesso em: 24.08.2020.; d] pressão entre as escolas privadas para a volta das aulas presenciais11Ver:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/07/29/interna_cidadesdf,876437/carreata-pede-reabertura-de-escolas-particulares-de-educacao-infantil.shtml Acesso em: 24.08.2020., dessa maneira, para fazer valer os altos custos de suas mensalidades e diminuir a migração para o setor público12Ver:https://www.gazetadopovo.com.br/parana/alunos-escolas-particulares-migracao-rede-publica/ Acesso em: 24.08.2020.; e] insatisfação geral da população com os resultados obtidos até o momento.

Hoje, após a manifestação destas contradições, presenciamos a tentativa de retorno, ainda que de forma gradual, para as aulas presenciais, sobretudo na educação básica. O estado do Amazonas foi pioneiro em autorizar a volta às aulas presenciais. Outros estados formaram conselhos com o objetivo de elaborar protocolos para viabilizar o retorno. Na medida em que os estados se movimentam para autorizar o retorno das aulas presenciais, professores, sindicatos e a comunidade escolar, de forma geral, evidenciam os riscos da contaminação e, por conseguinte, do crescimento do número de mortes. Muitos familiares afirmaram que não irão encaminhar os alunos para a escola na ausência de uma vacina. Eleva-se a indicação de possíveis greves, bem como outras medidas de enfrentamento que possam obstaculizar a predisposição genocida do Estado13Ver:https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2020/08/02/professores-estao-certos-em-resistir-a-voltar-as-escolas.htm Acesso em: 24.08.2020.. É fundamental o destaque que a possibilidade do retorno ocorre em um momento em que os meios de comunicação informam uma média diária de 985 mortes nos últimos sete dias14Ver:https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/08/23/media-movel-de-mortes-por-covid-no-brasil-foi-de-985-nos-ultimos-sete-dias.ghtml Acesso em: 24.08.2020.. Desta forma, os indivíduos mais vulneráveis, ou seja, pertencentes às populações ou grupos sociais historicamente excluídos e que, diariamente, tem o acesso negado aos serviços de saúde, assim como idosos e pessoas com algum tipo de comorbidade, são descartados como parte previsível de uma estatística. À vista disso, somos convidados a substituir a perplexidade por uma morte evitável, pela naturalização dos óbitos de determinados indivíduos. Nos convencem a trocar a revolta pelo descaso do Estado, pela normatização de uma contabilidade macabra, que surge, quase sempre, entre a previsão do tempo e as notícias do esporte.

Na afirmação da defesa do óbvio, ou seja, na proteção inconteste do direito à vida, sobretudo dos trabalhadores, não podemos nos furtar da constatação do nó que se formou durante a pandemia acerca da implementação do ensino remoto. De acordo com Engels (2015, p.151):
Enquanto encararmos as coisas como inertes e inanimadas, cada uma para si, uma ao lado da outra e uma depois da outra, de fato não depararemos com as contradições entre elas. Encontramos nelas certas propriedades – em parte comuns, em parte diferentes e até contraditórias entre si –, mas, nesse caso, distribuídas em coisas diferentes e, portanto, não contendo nenhuma contradição em si. […] Porém, tudo muda completamente de figura assim que examinamos as coisas em seu movimento, em sua mudança, em sua vida, na incidência recíproca uma sobre as outras. Nesse caso, envolvemo-nos imediatamente em contradições.

Aqui evidenciamos um impasse, a fixação do nó. Se por um lado, de imediato, resistir a volta das aulas presenciais se apresenta como uma necessidade na luta pela garantia do direito à vida, no embate contra a naturalização da morte, de outro, corremos o risco de desamarrar o nó em um sentido contrário aos interesses da classe trabalhadora, ou seja, de conformar o ensino remoto, de propiciar um tempo necessário para que esse modelo se ajuste, se afirme, dia após dia, transfigurando-se de provisório para permanente. Desse modo, se aprofundará as desigualdades entre os estudantes, a precarização, a superexploração e a descaracterização do trabalho do professor, bem como, facilitará a drenagem de recursos públicos para grandes corporações capitalistas, consolidando e ampliando a criação de um novo mercado.

Destarte, não nos cabe compreender o retorno às aulas presenciais e a permanência do ensino remoto em contraposição. O essencial nesse processo é apanhar as contradições, as novas conformações do real em movimento e mediar as nossas formas de luta. De acordo com a poetisa, os laços “não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam”, portanto, o ensino remoto é um nó que jamais foi um laço. Nossa tarefa, então, não é tentar desatar o nó, mas cortar a corda, para que, de um jeito ou de outro, ela não nos sufoque.

Osvaldo Teodoro dos Santos Filho é professor de História da rede básica estadual de Minas Gerais, militante do PCB e da Unidade Classista.

Texto Revisado por:
Najla Gama Passos Silva: Pedagoga, mestra em educação e militante do PCB.
Tuani Guimarães: Professora de sociologia da rede básica estadual de Minas Gerais, militante do PCB e da Unidade Classista.

Referências:
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring. Tradução Nélio Schneider. 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2015.

IASI, Mauro. A crise do capital: a era da hipocrisia deliberada. Política, Estado e Ideologia na trama conjuntural. São Paulo: ICP, 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Manifesto Comunista; Teses de abril. Vladímir Ilitch Lênin: Com textos introdutórios de Tariq Ali. – 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. – 1.ed. revista. – São Paulo: Boitempo, 2011.