Por Letícia Caroline* e Renata Regina* 

A prática manicomial surgiu numa conjuntura higienista e contraria a classe trabalhadora. Os manicômios eram  direcionados àquelas e aqueles considerados fora dos padrões de normalidade e eram pouco úteis aos modos de reprodução do capitalismo. Desta forma, as(os) trabalhadoras(es) que não eram submetidas(os) à exploração, sendo pessoas com questões de saúde mental ou não, acabavam sendo varridas(os) dos espaços públicos e de socialização. Mais que isso, eram jogadas aos manicômios. Nos manicômios, os considerados loucos, eram medicalizados, lobotomizados, torturados e mortos. Eram desumanizados e destituídos de qualquer direito ou dignidade.

   Na cidade Mineira de Barbacena, ocorreu o chamado “holocausto brasileiro”, onde foram “internadas” milhares de pessoas no hospital Colônia. Estas pessoas eram retiradas à força das ruas, dos atos políticos e do enfrentamento ao estado burguês. Eram pessoas comunistas, mulheres feministas ou que eram de alguma forma afrontavam à família tradicional burguesa como trabalhadoras domésticas que engravidavam do patrão, pessoas negras, indígenas, lgbtqia+, em situação de rua, com deficiências e/ou com comportamentos que contrariavam a ordem vigente. Retirar estas pessoas dos espaços democráticos foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo que conhecemos. Torturar e matar parte da classe trabalhadora evidencia a forma de fazer política da burguesia. 

   Somente no hospital Colônia, morriam cerca de 16 pessoas por dia. Nem 30% destas sequer continham diagnóstico de doença mental. Ao final, foram mais de 60 mil mortes somente em um manicômio e em pouco período temporal. Por este motivo, trabalhadoras e trabalhadores, usuários e familiares dos usuários dos serviços de saúde mental construíram popularmente um movimento para denunciar o genocídio. O Movimento Antimanicomial, que  era contra o modelo manicomial e as graves violações de direitos que ocorriam nele. 

   O movimento incorporou-se rumo ao cuidado da saúde mental em liberdade, após a carta redigida no II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental em 1987, conhecida como “Manifesto de Bauru”. Cuidar em liberdade é garantir dignidade às pessoas em sofrimento mental, é considerar que não devemos retirar as pessoas loucas dos espaços públicos e de socialização, e não mercantilizar as formas de tratamento. Nise da Silveira, filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e reconhecida mundialmente por revolucionar o tratamento de saúde mental no Brasil, foi pioneira da  da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial em nosso país, quando ainda na década de 1940, defendia formas humanizadas de tratamento quando era comum tratar  pacientes internados em manicômios com métodos agressivos como o eletrochoque, camisa de força e lobotomia. Nomes como Franco Basaglia, psiquiatra italiano que tinha como princípio o “pertencimento de classe: classe dos loucos”; e Marcus Vinicius Matraga, professor da UFBA e assassinado em 2016 justamente por denunciar as formas abusivas de tratamento;  também estiveram no enfrentamento e deixaram suas práticas revolucionárias como legado. 

   A luta antimanicomial foi fundamental para  a conquista de leis e políticas públicas  que   tratam da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência. Essas leis atribuíram ao Estado a responsabilidade de promover um tratamento em comunidade, possibilitando a livre circulação dos pacientes e não mais a internação e o isolamento, contando com os serviços de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de Convivência e Cultura, as Unidade de Acolhimento (UAs), e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III). 

   Em  2001 foi aprovada legislação que estabeleceu também a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil, através do fechamento de hospitais psiquiátricos, abertura de novos serviços comunitários e participação social no acompanhamento de sua implementação, a lei também impede as internações compulsórias, que são realizadas sem o consentimento do paciente ou de seus responsáveis e indica que a internação deveria ser um último recurso em casos de extrema urgência, quando o paciente é tido como uma pode oferecer ameaça para si e/ou para terceiros, e determina que esses casos, o médico deve notificar ao Ministério Público sobre a internação e alta. Outro marco importante foi a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011, que previa a ampliação e a articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no âmbito do SUS.

   No entanto, mesmo com todos os avanços, alguns manicômios continuam existindo. É importante ressaltar que essa legislação ainda não é devidamente implementada e está em constante ameaça, por isso a luta antimanicomial é tão importante e necessária. Na conjuntura atual, com o avanço da onda neoliberal e fascista, a lógica manicomial  voltou a ganhar força e a Política de Saúde Mental está passando por retrocessos significativos. Isso, pois o atual governo segue realocando as verbas para a abertura de mais leitos em hospitais psiquiátricos, que deveriam ser extintas de acordo com a legislação brasileira e tratados internacionais, além de financiar as comunidades terapêuticas.Em março deste ano, o Ministério da Cidadania publicou edital que destina R$10 milhões para Organizações da Sociedade Civil (OSC) que prestam atendimento como hospitais psiquiátricos.

   Para resolver a questão da insuficiência dos serviços públicos no atendimento da alta demanda por serviços de saúde mental, precisamos de garantir o fortalecimento do SUS, com investimento de recursos que proporcionem ampliação, melhoria das estruturas, condições de trabalho e remuneração para os trabalhadores. Retomar a lógica manicomial e destinar recursos públicos para iniciativa privada, agrava o problema e representa um enorme retrocesso em todas as conquistas do movimento antimanicomial.

  Não defendemos a abertura de mais leitos psiquiátricos, pois com a reforma, a internação deveria ser considerada apenas em última instância. Abrir mais leitos significa priorizar algo que o Movimento Antimanicomial visa como exceção, além de fortalecer a prática. Defendemos também o fim das comunidades terapêuticas, pois não estão alinhadas com o princípio de cuidar em liberdade. Estas comunidades, localizadas em locais isolados como fazendas e sítios, aproveitam da internação compulsória de jovens para utilizá-las como força de trabalho. Investir em comunidades terapêuticas é financiar a exploração dos trabalhadores em subempregos por parte de integrantes de igrejas evangélicas, diretamente ligadas à coordenação das casas e manutenção da prática escravagista. 

Imagem do cortejo da luta antimanicomial em BH 18/05/2022 CRM FAZ MAL A SAÚDE PÚBLICA

   Por fim, na conjuntura atual, onde a Dra. Cláudia Navarro, ex-Diretora do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), foi nomeada como secretária de Saúde de Belo Horizonte. Precisamos mais que nunca estar junto à Luta Antimanicomial. O CRM na secretaria de Saúde de Belo Horizonte (cidade referência nos serviços de saúde mental) representa um risco em relação a defesa das políticas públicas, principalmente, da Política de Saúde Mental, pois o mesmo se evidencia sendo contra a reforma psiquiátrica, e em 2021 tentou impedir o atendimento nos Centros de Referência de Saúde Mental (Cersams), pedindo que os mesmo fossem interditados, após supostamente encontrar irregularidade em vistorias realizadas nas unidades. Na prática, o conselho queria impedir que os médicos realizassem atendimentos nos centros, ignorando o impacto social que isso acarretaria. Além disso, se posicionou a favor do kit covid, defendido pelo genocida presidente e toda a burguesia negacionista.

   Por esse motivo, afirmamos que: saúde não se vende, loucura não se prende. Lugar do CRM é na CPI da Covid. Em defesa do SUS. Pelo cuidado em liberdade!

Viva a Luta Antimanicomial!

*Letícia Caroline é Psicóloga social, abolicionista penal e militante no CFCAM. Atua como analista social na Política de Prevenção à Criminalidade, também no apoio psicossocial e reterritorialização de indígenas venezuelanos refugiados pela SJMR, é da diretoria do núcleo Abrapso BH e compõe o Desencarcera MG.

**Renata Regina é mãe, doula, fotógrafa e jornalista em formação. Compõe a Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista, a direção nacional e estadual do PCB e é pré-candidata ao governo de Minas Gerais pelo partido.