Por Marizete Andrade

Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, após ter sofrido uma regressão em mais da metade ao longo de dez anos, o número de brasileiros que retornaram a um patamar socioeconômico no qual não é possível ter acesso regular às condições básicas de alimentação corresponde ao espantoso contingente de 10,3 milhões de pessoas. Este cenário, que no momento presente é potencializado pela crise sanitária do Covid-19, torna-se ainda mais dramático nas áreas rurais, onde 40,1% da população atravessa a grave situação da fome.[i] Mas, como é possível que possa ocorrer dentro de um país a extraordinária expansão da cadeia produtiva da agricultura e pecuária ao mesmo tempo em que se amplia o número da população camponesa que sofre de insegurança alimentar? A resposta para esta questão está na relação de efeito e causa entre a pobreza da população rural e o modelo de estrutura agrária do país, cuja marca fundamental se refere a acentuada concentração fundiária.

Não existem registros na história do Brasil de se tentar construir uma política nacional efetiva para resolver o problema social e humano provocado pela apropriação privada de terras em larga escala e pela exploração predatória de recursos naturais para fins totalmente alheios aos interesses dos povos camponeses e da população brasileira em geral. Na verdade, o Estado brasileiro é o grande responsável por garantir e legitimar a manutenção do latifúndio no país, manifestando-se, no momento atual, através do que convencionou-se chamar de agronegócio. É também o Estado que permite a forma predatória de domínio sobre a natureza pela qual a produção agrícola capitalista se desenvolve. Tal consentimento acontece por meio do sucateamento das agências e órgãos ambientais fiscalizadores.

A ausência de um plano de reforma agrária que tenha o objetivo de facilitar o acesso da população camponesa à apropriação e uso da terra e, deste modo, possibilitar a elevação dos padrões de vida dos trabalhadores rurais explicita que o Estado brasileiro tem um compromisso histórico com a burguesia agroexportadora. As questões relacionadas a política fundiária para a reforma agrária foram e continuam a ser tratadas no âmbito da segurança nacional e dirigida pelos aparelhos repressivos do Estado. Busca-se, desta forma, diminuir os tensionamentos socias e as mobilizações dos trabalhadores do campo ao mesmo tempo em que se preserva a expansão dos grandes empreendimentos agrícolas.

O fantástico montante de 2 trilhões de PIB alcançados pelo setor do agronegócio em 2020, em plena pandemia, é fundamentalmente devido a duas circunstâncias: a primeira delas é o livre acesso que as grandes empresas, fundos de investimentos imperialistas e bancos têm aos recursos naturais e terras, particularmente na Amazônia Legal. A segunda é a existência de uma massa populacional no campo totalmente desassistida de políticas públicas e, que não tem outra alternativa senão colocar a força de trabalho, da forma mais precarizada possível, para a reprodução do capital. Em ambas as situações, é o Estado brasileiro que permite.

Não podemos assumir a posição ingênua e ilusória de que o problema agrário no Brasil será solucionado através de decreto, ou de qualquer outra inciativa de caráter jurídico do governo, por mais progressista e popular que este seja, sem o amparo de um amplo movimento reivindicatório. Não esqueçamos do golpe de 1964 e as Reformas de Base de João Goulart. Dois anos antes dos militares tomarem de assalto o controle político do país com a assistência do governo estadunidense, o então embaixador Lincoln Gordon teria reportado através de documentos oficiais ao presidente John Kennedy que as atitudes de Goulart e Brizola sobre a reforma agrária representavam uma ameaça ao que ele considerava de “mundo livre”. Este episódio nos mostra que é impossível resolver a questão agrária no Brasil sem considerar a constituição de uma base social reivindicatória compatível com a magnitude da solidez e estabilidade que o latifúndio adquiriu ao longo destes cinco séculos de formação econômica do país.

A necessidade da reforma agrária é um imperativo para resolver os mais graves problemas sociais e econômicos de todo o país. Assim, precisamos intensificar o debate sobre esta questão e apresentarmos formas práticas de se realizar a reforma agrária, considerando que a aliança entre as forças políticas do campo e da cidade é condição imprescindível para a completa transformação da organização e estrutura fundiária nacional. A libertação dos camponeses é uma das etapas da construção do socialismo no Brasil.

[i]  Informações obtidas pelo IBGE em 17 de setembro de 2020 a partir de coletar de dados entre 2017 e 2018 em quase 58 mil domicílios de todo o país.