Pablo Lima*

Um dos principais inimigos da democracia no Brasil é a lei eleitoral atual.

Para ilustrar, permitam-me utilizar da seguinte metáfora: se as Olimpíadas fossem jogadas com a mesma lógica da legislação eleitoral brasileira, na corrida dos 100 metros rasos, o campeão mundial Hussain Bolt, o homem mais rápido do mundo, largaria já na marca dos 90 metros, enquanto corredores sem medalhas teriam que correr 500 metros.

Quando o país pôs fim à ditadura militar, terrorista e assassina (1964-1985), a nova Constituição de 1988 assegurou que “Os partidos políticos tem (…) acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei” [Art.17 §3].

Nas eleições de 1989, quando tal lei prevista na Constituição ainda não existia, o tempo de rádio e TV foi distribuído igualmente entre todos os candidatos à presidência. Era o renascimento da democracia substituindo os militares que haviam tomado o poder à força, por um Golpe de Estado, 25 anos antes. 

Na primeira eleição democrática em mais de duas décadas, em 1989, a igualdade de condições no processo eleitoral era considerada uma questão de justiça básica entre as diversas candidaturas e para que a população pudesse participar com qualidade do processo de debate, campanha e eleição direta dos seus representantes. Finalmente, o povo tinha o direito de votar e ser votado.

A eleição de Collor deu início, no entanto, à implementação do projeto neoliberal no Brasil, marcado pela privatização das empresas estatais de mineração, telecomunicações, transporte ferroviário, siderurgia, sucateamento do Estado, achatamento dos salários dos serviços públicos, precarização das condições de trabalho e por muita, muita corrupção. Infelizmente, nossa redemocratização coincidiu com a desestruturação do Estado em nome do mercado e da moralização. O que se viu, poucos anos depois, foi o impeachment de Collor (1992) por acusações de corrupção.

Mas o projeto neoliberal, que não é muito afeito à democracia, continuou. Assim, durante o governo FHC, um congresso hegemonizado pelos tucanos, em meio à euforia do toma-lá-dá-cá que envolveu as privatizações e diversos escândalos de corrupção, como a compra de votos para a reeleição, aprovou a lei eleitoral prevista na Constituição de 1988, a LEI Nº 9.504, DE 30 DE SETEMBRO DE 1997, que “Estabelece normas para as eleições.”

Trata-se de uma peça de legislação profundamente anti-ética, pois favoreceu abertamente aqueles que a aprovaram. Ao invés de primar pela igualdade de todos perante a lei, a maioria dos deputados e senadores do Congresso Nacional em 1997, de maneira oportunista, legislou em causa própria e contra as bancadas minoritárias e os partidos sem representantes, criando uma lei que transforma iguais (candidatos ao mesmo cargo) em desiguais: candidatos com diferentes condições de disputa; alguns com vantagens e outros com desvantagens que nada tem a ver com suas idéias ou propostas).

A partir de então, a distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita passou a ser determinada pela quantidade de deputados federais que cada partido possui na legislatura durante a qual se realiza a eleição, algo que não encontra qualquer respaldo na Constituição.

Você sabia?

Você sabia que quando você vota para Deputado Federal em seu estado, você está determinando a distribuição do tempo de rádio e TV que os candidatos de todos os estados e municípios terão nas eleições seguintes? Pois é… pouquíssimas pessoas se dão conta disso, que também é completamente silenciado pela mídia. E é algo inconstitucional: não há qualquer base no texto da Constituição que permita vincular o tempo de propaganda eleitoral em todo o país por meio do voto em deputado federal, voto este que se dá em nível estadual.

Ou seja, os eleitores de São Paulo decidem o tempo de TV dos candidatos no Acre; os estados mais populosos e, portanto, com mais deputados federais, decidem o tempo de TV dos candidatos em todos os estados e nos municípios que tem propaganda eleitoral gratuita na TV nas próximas eleições. Quando votamos para deputado federal, não fazemos a mínima ideia disso!

Desde a aprovação desta legislação, ou seja, durante 20 anos, a população brasileira se acostumou com uma propaganda eleitoral na TV e rádio caracterizada por grande discrepância entre o tempo de cada candidatura. Aqueles candidatos de partidos com muitos políticos já eleitos tem mais tempo, enquanto as candidaturas de partidos pequenos e, principalmente, sem representantes já eleitos, é ínfima. Essa maneira de apresentar os candidatos tem se naturalizado no país, mas não é, de forma alguma, natural, e muito menos, justa.

Na sua redação inicial a lei, no artigo 47, § 2o, dizia que: “Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do § 1o, serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato, observados os seguintes critérios: a) 1/3 igualitariamente; 2/3 distribuídos proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados”.  Ou seja, para 30 minutos de propaganda, 20 minutos eram distribuídos somente entre partidos com representantes no congresso, de maneira proporcional, e 10 minutos para todos os partidos (incluindo os que já tinham parte dos 20 minuto anteriores). No caso de uma eleição com 10 candidatos, um partido sem representantes eleitos teria, ao final das contas, 1 minuto dos 30 minutos de propaganda.

Tudo que é ruim pode piorar

Em 2015, o mesmo Congresso que rasgou a Constituição no ano seguinte, impedindo a continuidade do governo de uma presidente eleita e contra a qual não houve nenhuma acusação de crime de responsabilidade, realizou uma “mini-reforma eleitoral” que aprofundou mais ainda a injustiça da lei eleitoral: no lugar da proporção 2/3 para partidos com representantes e 1/3 para todos os partidos, a nova redação da lei aumentou a diferença para uma proporção de 90% do tempo para partidos com representantes e apenas 10% do tempo para todos os partidos. (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

É por isso que nestas primeiras eleições após o Golpe Parlamentar, Jurídico e Midiático de 2016, assistimos a absurdos que atentam contra a dignidade humana, tais como candidaturas ao Senado Federal que tem 7 segundos de tempo de TV (é o caso do Professor Túlio Lopes PCB 210), ou candidaturas à presidência da república (como a de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara PSOL 50), com 10 segundos.

A que ponto chegamos?! É um atentado contra a democracia e contra o mais básico bom-senso esperar que algumas candidaturas à presidência tenham menos de 10 segundos de tempo de TV, enquanto outras possam se apresentar por mais de 5 minutos (o que ainda é pouco)! Isso não pode ser considerado sério e nem justo. Um processo tão importante para o futuro do país deveria ocorrer de modo mais sensato, se o que se quer é realmente o bem comum. É preciso protestar contra uma legislação que insulta a inteligência dos cidadãos e a luta de todos aqueles que se dedicam a construir organizações político-partidárias legítimas, sejam de esquerda ou de direita.

Mas é esta a montanha que devemos escalar, como diria Lênin: enfrentar um inimigo que não se encontra apenas nas organizações adversárias, representantes do Capital e da burguesia. Esse inimigo é o próprio Estado e a própria legislação eleitoral. Mesmo assim, é necessário ocupar o espaço e construir uma bancada de parlamentares comunistas e progressistas para reverterem legislações canhestras enquanto pavimentamos o caminho para a grande transformação social revolucionária que falta na nossa história.

* Pablo Lima é historiador e professor de Ensino de História da UFMG, membro do Instituto Caio Prado Jr., militante do movimento docente universitário, membro do Comitê Regional MG e do Comitê Central do PCB.