Daniella S. S. Néspoli*

A memória enquanto um exercício de reconhecimento do passado e de aproximação com a realidade presente, nos possibilita a desmistificação de tentativas ideológicas de negação dos fatos históricos. Vivemos em um tempo de manipulação das verdades, nesse sentido recuperar a memória é um ato de resistência ao apagamento histórico dos processos de luta que estruturam a formação da nossa sociedade brasileira. Nessa perspectiva, coloca-se aqui a importância de recuperar a memória de luta e resistência dos povos do campo no Brasil, em um mês marcado pela violência cometida pelo Estado no “Massacre de Eldorado dos Carajás”, em que ocorreu, no dia 17 de abril de 1996, o assassinato de dezenove sem-terra no município de Eldorado do Carajás, no sul do Pará.

Segundo dados e informações sobre conflitos no campo, registrados pela Comissão Pastoral da Terra, o índice de assassinatos acometidos contra povos do campo (Sem – terra, assentados, índios, quilombolas, pescadores e lideranças) em comparação aos números registrados de 2004 a 2014, praticamente duplicou no ano de 2015, 2016 e 2017, ou seja, a violência e o massacre contra os povos do campo nesses últimos anos aumentou em 100%.

Mediante a uma conjuntura de retrocessos no campo das políticas sociais, no desmonte dos direitos humanos e na ostentação da intolerância e do autoritarismo, se faz preciso uma leitura de realidade que evidencie como o discurso de ordem dos interesses da sociedade burguesa tem definido e fomentado este quadro de violência. Não podemos esquecer que durante a instauração do regime militar em 1964 este quadro se intensificou, as principais lideranças foram presas, jogadas à clandestinidade e assassinadas, ocasionando uma desarticulação das lutas em curso mas não o seu desaparecimento, que ao contrário, em resposta a opressão tomaram forças como resistências isoladas, reorganizando em ritmos diferenciados de forma que no final da década de 1970 os trabalhadores do campo surgem como atores principais da redemocratização do país.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1922 busca uma proposta de aliança entre operários e camponeses. As memórias de militantes como Gregório Bezerra, José Pureza, Bráulio Rodrigues da Silva, Irineu Luis de Moraes e Lyndolpho Silva marcam esses momentos iniciais desta articulação e também do esforço e dificuldades encontradas na elaboração de uma linguagem comum entre as linhas de ação do partido em diálogo com as demandas cotidianas dos trabalhadores do campo. Foi na capital mineira que ocorreu o Congresso Camponês de Belo Horizonte de 1961, a reivindicação do acesso à terra tornara-se um tema público que não podia mais ser ignorado. Logo em 1962 foi regulamentado o direito de sindicalização dos trabalhadores do campo e aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural.

Os massacres e crimes cometidos contra as organizações de luta do campo marcam historicamente, durante séculos, as relações políticas, sociais e econômicas da sociedade brasileira, sendo ainda cotidianamente presentes em pleno século XXI. Desde Palmares, Canudos, Contestado e Ambrósio, a resistência campesina se coloca como uma memória importante para a construção da consciência histórica da população do campo enquanto classe trabalhadora. A luta pela terra expressa a potencialidade da organização coletiva em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, a partir de um sistema econômico de redistribuição da riqueza e dos meios de produção. São organizações que se afirmaram sujeitos políticos, sociais, culturais e éticos de pensamentos saberes, memórias e identidades construídos a partir da resistência aos padrões de poder, dominação e subalternização, sendo então, os movimentos de luta pela terra um dos principais alvo de governos autoritários que buscam criminalizar, exterminar, organizações potentes de resistência a dominação e opressão do capital.

O projeto de reforma agrária popular tem apontado caminhos importantes para a consolidação de um novo modelo de organização da sociedade brasileira, em que a distribuição da riqueza, o respeito a diversidade entre povos e culturas e também ao meio ambiente tem evidenciado a funcionalidade de uma nova estruturação das relações produtivas, em oposição radical ao modelo vigente de crescimento e acúmulo de riquezas do capital. Em um contexto de crise do sistema mundial capitalista, este projeto luta se coloca como uma possibilidade de enfrentamento estrutural no colapso das sociedades modernas, no acirramento das lutas de classe e na proposição de novos horizontes para o socialismo.

*Daniella S.S Néspoli é assistente social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), artista e pesquisadora da temática “Luta e resistência quilombola”.